sábado, 5 de novembro de 2011

textos escolhidos


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DENUNCIE O FASCISMO BRASILEIRO QUE ESTÁ ATUANDO NAS INSTITUIÇÕES DE ESTADOS COMO RIO DE JANEIRO




TEXTOS ESCOLHIDOS


                                                                                                          Eliane Colchete



   1 :    Teorias estéticas - Bakhtin e Dufrenne


       I -
                                                                                                      


           A concepção de Bakhtin parece-me interessante relacionar ao que seria uma fenomenologia da composição artística, assim como mais tarde elaborada por Dufrenne. A palavra que os uniria seria a totalidade da obra, pelo que os elementos propriamente expressivos e materiais da linguagem, como prerrogativas do trabalho poético, seriam apenas componentes do que Bakhtin chamou a “lógica da criação”, sendo, para a teoria, somente esta o mais importante conceituar, assim como é o que efetivamente realiza a experiência estética da leitura.
        Dufrenne cede maior espaço que Bakhtin, certamente, a esses elementos materiais, como quando descreve efeitos de inter-relações fonéticas em certo poema. Isso por que sua fenomenologia já está bem informada por Merleau-Ponty, de modo que a percepção é a base da experiência estética, enquanto que Bakhtin lida mais com o que designa a estrutura dos valores. Há certamente uma tensão entre a preminência concedida ao vivido, em Dufrenne, e a oposição de Bakhtin entre o que é para ser vivido e o que deve ser criado, somente este podendo estender-se ao todo estético, dever ser que comunica-se não apenas ao autor, mas também ao que ele chama “contemplador”. A ênfase dos escritos backtinianos sobre “o autor e o herói” parece ser ultrapassar definitivamente o domínio do sensível na formação de categorias relevantes da teoria literária, enquanto Dufrenne, em O Poético, constrói, inversamente, um corpo teórico cuja base repousa no “ser sensível da linguagem”.
           Para Bakhtin, a expressividade, no sentido dos procedimentos formais de uma obra, esse domínio do sensível, não chega a esclarecer a experiência estética por isso que, inversamente, é o conteúdo que cria a forma. Uma vez tendo-o como o objeto interiormente concebido, tem-se também o caminho pelo qual o objeto chega ao seu próprio enunciado: “ a forma não é dada ao objeto, como que por encanto, ela emana do objeto, como expressão desse objeto”. O perceber da forma corresponde ao momento passivo da contemplação, aquele em que algo de automático se cumpre, ou seja, justamente uma recepção/percepção, pois entre o objeto interiormente concebido e a produto estético, o autor interpôs o cálculo de sentido onde interveio, concomitantemente, o caminho da forma e o endereçamento a uma contemplação que, conforme creio, poderíamos designar ideal. A realização da contemplação, assim, prende-se à totalidade do objeto, não ao mediun pelo que a sua comunicação se efetiva na materialidade do signo.
           Para Dufrenne, a percepção é o momento fundamental, mas por aí, por um viés bem oposto ao bakhtiniano, também lhe parecerá o termo “expressividade”, algo ambíguo em termos de categoria teórica relevante: “se o poético é necessariamente expressivo, o expressivo não é necessariamente poético”. Aquilo que Bakhtin havia estatuído como tarefa da teoria, “explicar a relação propriamente estética que consiste em viver a relação criadora de um autor”, Dufrenne começa por interpretar em termos de postular de que relação se trata, de quais são suas propriedades, para somente depois de termos bem claro em que consiste a recepção da produção estética, ou isso que podemos chamar a realização do poético, ensaiarmos explicar como se chegou a esse efeito.
          Ora, se Bakhtin, no prolongamento daquela asserção, rejeita por princípio que essa explicação possa ser fornecida nos termos de uma qualquer “empatia”, e portanto, não seria no âmbito de um terceiro termo comum a ambos, autor e receptor, a saber, dos elementos da natureza, que deveríamos fazer portar a análise, Dufrenne faz da Natureza o domínio comum desse transporte que ele designa mágico, uma vez que, como Valery estipulou conclusivamente, o estado poético que se transmite à recepção do poema não é algo que se pudesse conceituar como a transmissão de uma ideia: “ a Natureza, pelo poeta, fala através dele. Por outro lado, o leitor é igualmente transportado para o estado de natureza: ao que é imediato, à inocência do sentimento.” Se as categorias caras à Dufrenne são a percepção e o que ela suscita, o sentimento, a empatia parece incluir-se no rol dos aspectos do fenômeno, já que ele abrange o nível da cura, assim como quando o shaman recita o mito poético, por sua declamação facilitando um parto laborioso – e que esse efeito é real podemos crer por seu registro etnográfico, assim como se sabe de resultados semelhantes, para outros estados doentios, por recitação do verbo poético.
            O essencial é que a recepção da palavra poética suscita um estado de ser, enquanto a assimilação de uma ideia, inversamente, é “um poder e um instrumento de poder”, conforme Valery, citado por Dufrenne. O exemplo do parto é de certo modo relançado na sugestão desse nível imediato da recepção como um “co-nascimento”. O sentido das palavras perde a autoridade do seu uso costumeiro, para investir-se do efeito imperioso e definitivo suscitado por sua reordenação na associação singular do poema, efeito porém que só designa com essas palavras grifadas, o poema na sua integralidade, na sua inteireza.
          Isso é importante ressaltar, pois esses dois adjetivos só são aplicáveis ao poema enquanto sucedâneo de um mito que não pode ser o da individuação psicanalítica, não se compõe por uma justaposição de fatores, de experiência ou formais. O terapêutico na arte, “a indução de uma estrutura biológica pela estrutura formal” do mito ou do poema, deve-se a um estado de ser que o verbo mágico estético-literário suscita em termos de “encantamento”, algo como “um certo estado de receptividade e disponibilidade” que podemos supor componentes do que então se nomeia como o “estado poético”.
            Nesse ponto atingimos a divergência do ethos teórico, bakhtiniano e duffreniano. É que esse estado, correspondendo à relação estética realizada, como aquele em que a recepção do poema é con-sagrada, para Dufrenne jamais poderia ser objeto de uma análise estrutural. O máximo que devemos procurar alcançar em termos de teoria literária é a junção de formal e vivido, algo sem dúvida de modo algum facilitado, uma vez que análises de forma e conteúdo perfazem procedimentos opostos. Esse vivido concreto, porém, esse máximo que funda a pertinência teórica, já que é somente o que corresponde à realização estética, é o que o estruturalismo não poderia esperar chegar a esclarecer, uma vez que o que sua ontologia pressupõe são relações inconscientes, que não correspondem à experiência efetiva, mas que são designadas como suas condições de possibilidade.
          É a “epifania do sensível”, como desvendamento de um Mundo expresso sem mediação, o que se torna preciso nomear em termos do sentido – justamente o que pertence ao sensível, dirige-se à sensibilidade do homem, sensibilidade que corresponde à sua experiência de mundo como algo totalizante desse mundo – do estado poético. O poema, enquanto esse todo análogo ao sonho, esse domínio de um sentido que somente ele soube criar e que é comunicado a todas as partes componentes, que assim escapam à determinação extrínseca qualquer que pudesse possuir na exterioridade desse domínio, figura ele mesmo um mundo singular, por aí a validez de atribuir ao poema os valores “ imperioso e definitivo” que faz lembrar o absoluto hegeliano.
           Esse fator epifânico, que não hesitarei designar lírico um pouco como os românticos que pelo lírico definem o romance e por extensão o literário, é, contudo, elemento de um verdadeiro Cogito – o terceiro termo após a percepção e o sentimento será precisamente o pensamento. A percepção precipita a estesia, de modo que não apenas apreendemos o “c” da corça (na aproximação da leitura à nossa língua), mas sentimos toda a força do ímpeto do animal na intensidade em que se jogou o fonema na proximidade dos demais termos do verso (ô biche, avec langueur longue auprés d'une grappe / ô corça, com longo langor ao pé de um cacho), e desde aí um pensamento novo nasce, como essa significação de um animal não biologicamente concebido, mas conforme Dufrenne, no seu “mundo de langor”. Realizamos esse “pensamento poético” de um ser corça que é langor.
           Nesse terceiro termo localizaríamos com precisão o que me parece adequado designar a imaginação do quati, no conto de Clarice Lispector (Amor), cujo mundo é o de um cachorro por estar vivendo como um animal doméstico a passear de colheira com o dono, portanto, não poderia ser separado do ser-cachorro. É nesse nível de elaboração puramente poética que Bakhtin, por sua vez, localizaria a gênese da obra, enquanto Dufrenne a entende como o momento de completude da realização estética cuja transição entre os momentos fundadores – percepção, sentimento, pensamento – se perfaz como transmutação de cada termo precedente no subsequente enquanto realização do estado poético. Parece-me que não poderíamos, na circunscrição de Dufrenne, supor que, ao menos para o poeta, o pensamento está antes. É certo que o poeta, enquanto autor empírico, não precisamos supor que participa do “encantamento”, mas não há como separar, mesmo na produção, as três categorias do ponto de vista do poema, concebê-los sem o elemento de transmutação que os une e precipita um no outro. Aceito assim um nível fundamental que seria estabelecido por Dufrenne, aquele em que o poema efetivamente subsiste enquanto mundo, onde não há discernibilidade entre as categorias, sem que sua entre-implicação deixe de ser, mesmo nesse nível, o elemento do “poético” que a teoria instala.
            O “pensamento poético” dufrenniano completa uma experiência de docilidade e aceitação – do outro que é o poema e tudo o que o poema induz a conceber e realizar, não do mesmo que é a subjetividade do receptor. No entanto, Dufrenne o nomeia em termos de um “igualar” cujo locus é a consciência. Há uma anulação de tudo o que poderia ser dispersivo desse igualar da consciência e do poema, anulação portanto do que seria uma imaginação do sujeito receptor, um simples “sonho” subjetivo. A consciência dócil ao ser do poema, o realiza enquanto aquilo que ele é, não o que simplesmente teria sido, nele ou por ele, projetado.
           Há um real subjacente ao sonho-poema, ao domínio autônomo do seu sentido, aquele do ser singular do poético, que nunca corresponde a um capricho, no sentido comum do termo imaginação, do poeta, na concepção de Dufrenne. Corresponde, sim, mas a isso que ele chama “Natureza” - é realmente o langor da corça, é realmente o sussurro do vento, é um sentimento real de “vibrar” ou “respirar” suscitado pelo ritmo, etc., o percebido, o sentido e o pensado no poema. Essa Natureza é transcendência, no limite o que nós, aqui, chamamos a imaginação, para Dufrenne corresponde a um Cogito fenomenológico, Penso liberado da limitação das ideias matemáticas para alcançar as regiões do ser, incluindo, com Dufrenne, o que parece-me uma autêntica região do poético. A questão teórica fundamental, portanto, é onde localizar o ontológico – que Dufrenne retira do estrutural para repor na existência como o vivido.
           A consciência dócil e acolhedora envolta no encantamento poético realiza – no sentido de conceber – uma realidade, uma verdade. Ora, sendo assim, não é somente o lugar de uma revelação de mundo, ou de um mundo possível, mas igualmente, de uma revelação de si por meio de uma atuação de si. Pois, essa verdade é da consciência, da transcendência, e eis por que não há, justamente, atuação de si da consciência receptora da obra, se esta se abandona às próprias fantasias, projeções pessoais: “a arte” só é “divertimento” ou “catarse”, como que “por acréscimo”, conforme Dufrenne.
            Com o requisito dessa docilidade, porém, o que o poeta suscita em nós, como aquilo de que resulta o estado poético, é a “alegria perfeita” na expressão de Valery, que corresponde a um verdadeiro “conhecimento”, não aquele que confere poder sobre o objeto, mas conhecimento do mais íntimo do objeto, que coloca o conhecedor, inversamente, em poder do objeto – por aí o termo usado por Dufrenne ser connaissance, que os tradutores Nunez e Souza salientam tão adequado, por não significar apenas “conhecer”, mas estender-se a “co-nascer”.
             A experiência de co-criação que transcende o vivido, de Bakhtin, ressoa bastante bem com o co-nascimento de Dufrenne. Entre ambos, não obstante a contraposição quanto ao modo de situar as relações língua-literatura, o apelo à unidade da experiência se torna veemente. Ao conduzir até a consciência de si a problematização estética, eles aproximam a temática da criação literária de uma rubrica comum a ambos. Para Bakhtin, trata-se porém da constituição da exotopia do autor na apreensão da produção em prosa, onde a rubrica se desdobra como a construção nessa linguagem do romance, da consciência de si do herói como duplo do autor, enquanto Dufrenne enfatiza como consciência um mundo objetivo produzido pela obra poética. A estrutura dos valores em Bakhtin é o que ressoaria com esse aspecto objetivado exclusivamente pela experiência da recepção literária. Contudo, nele o aspecto construtivo da experiência do desvelamento da consciência é mais importante, o elemento em que efetivamente se produz a dupla experiência, do fazer e do receber, literária.


   2 :      A interpretação do mito

          
            A linearidade da leitura do mito é o que se propaga quando ele é disseminado na outra palavra, no outro gênero, na sua paradoxal contrafacção “best-seller” - feita contudo como se fosse o próprio - assim o intelectual que é já personalidade e até feitio de corpo, em vez de ocupação, nas conhecidas versões dos “tipos” de pessoas, de que abusam os “ misticismos”. A essa altura a antiga frenologia já mudou para reflexologia, tendo deslocado-se para os pés – quem tem os artelhos tortos sofrerá de melancolia.
          Aqui, em vez da sua reprodutibilidade, pretendo examinar a duplicidade do mito, a ambiguidade do que ele aparentemente “conta” - pois o outro da sua leitura espreita a cada palavra que utilizamos para “contá-lo”.
           O Eros, como sabemos, submete psiquê à prova, mas ela não obtém êxito nisso. Ao desobedecer, expõe-se à errância, e é por compaixão – uma das faces de Eros, obviamente – que ele a resgata.
            Mas por que o Eros se fere nas setas, em consequência de que apaixona-se? Se o Eros se fere, podemos jogar com as palavras, então ele tem uma alma – ele erra, ele titubeia. Em vez de ser interpretável somente como redutível a um princípio intelectual, uma realidade da alma que nela, porém, está sempre beirando o afastamento, por que a alma está unida à matéria, e o princípio é somente ideia, puro ser.
            Os princípios intelectuais como o amor, a justiça, a soberania, etc., sendo o inteligível, como na interpretação neoplatônica de Plotino, é a alma que participa deles ou que os contempla ou que neles reside enquanto somente alma – mas de fato a alma é a parcialidade do seu espelhamento na matéria. A alma reside, no autêntico dela mesma, no princípio; mas o princípio, em relação a alma, é um outro; tratando-se de Eros é um duplo que acompanha a alma, como o anjo da guarda cristão, a cada alma encarnada.
           Mas os princípios intelectuais personificáveis como deuses, mesmo não sendo duplos desse modo do Eros pessoal, desempenham o mesmo papel em relação à alma do que é ao mesmo tempo natureza, autenticidade, identidade; mas mediato, interposto pelo que é avesso ao princípio, a materialidade, a contingência, a fugacidade, o ininteligível no entanto pensável, falável ou factível, como o erro. Eles são duplicados apenas enquanto sendo princípios ideais, são também deuses personificados.
           Eros não apenas erra ao ferir-se nas próprias setas e apaixonar-se, ele também proíbe – nenhuma pergunta pode vir de Psiquê. Nenhuma curiosidade quanto à identidade de Eros, isso tanto mais eles vivem juntos no mesmo palácio “erótico”. Psiquê não pode divisar o semblante oculto de Eros, mas pode usufruir da sua convivência. Se Eros errou, feriu-se – não podemos aventar que é a alma já atuando que o faz precipitar o móvel do seu apaixonar-se? O poder, algum poder da alma é o que está sob a restrição da mais severa censura ao pensamento, censura porém inscrita na cena inicial do mito.
           A alma é pura passividade no manifesto, no que se conta. É o objeto do amor e da proibição; como sujeito (da ação), é somente da imperfeição e do erro; é a sujeição aos trabalhos materiais impostos por Venus, mas nem isso Psiquê propriamente desempenha, sendo intermediada pelos seres da natureza; é quando desiste de esperar que alcança o que almeja tão arduamente, mas como objeto da compaixão e/ou da sabedoria do perdão de Eros.
           Se nos detemos, porém, no erro de Psiquê, vemos que ele consiste em Perguntar. Ela recircula, portanto, aquilo que havia ficado latente como censura antes da proibição, o inevitável pensar do poder da alma sobre Eros, ou da contaminação do anímico no inteligível – os deuses tem alma? Isso é o que foi proibido perguntar? Não sabemos bem o que não pode ser objeto de saber, mas entendemos o que era objeto do desejo – ver o semblante do amado. Contemplar o princípio inteligível, inversamente a Plotino, tornou-se o transgressivo prescrito na legislação do mito.
             Se lêssemos o mito como um símbolo do poder da alma, isto é, como sua agência, o que contaríamos seria que Psiquê precipita o apaixonamento de Eros; ele resiste ao seu poder, ou teme que ela o sobrepuje, mas isso por que ele confunde seus próprios sentimentos de amor com sentimentos de posse, de domínio – ele quer tê-la sem que ela propriamente seja por sua conta o que queira ser, sem que isso possa, por outro lado, impedir a interpretação habitual de que ela quer somente “ser sua esposa”, quer “fazer tudo quanto ele queira”.
           Um tanto jocosamente isso significando apenas, na linguagem do intérprete corrente do mito de Eros, que ela aceita obedecer à proibição dele por que está, muito naturalmente, “dominada” por ele – no “bom” sentido do termo, isto é, apaixonada.
           Mas se lemos o mito como o poder da alma, a palavra poder aqui está num sentido oposto a autoridade ou arbítrio, superioridade sobre o que se subjuga – inversamente, este é o caso da proibição de Eros. O “poder” da alma é somente sua potência, a efetividade do que ela faz sentir a outrem.
          Mas continuando o nosso relato de Psiquê, ela o enrola, mesmo sem premeditação: finge aceitar as suas leis, mas assim que pode, traz a luz para contemplá-lo. O que esse ato implica não é somente algo feito às escondidas – ela é quem faz ver a ele a impossibilidade de resistir ao desejo. Mas essa impossibilidade é Eros – a sua face contemplável. A alma é agora o duplo de Eros, é ela quem o guia para que ele se encontre a ele mesmo.
           Ele resiste, na errância da alma que é a sua, a afirmar a essência erótica que é desejo ou materialidade, o efetivo do ser. Mas a impossibilidade disso já estava inscrita desde sempre, não imediatamente por ser a alma “irresistível”, mas inversamente, por ser ela mesma o que não é capaz de resistir, ainda que seja o irresistível dessa alma que torna Eros aquiescente ao encontro da proscrita Psiquê, ou o que o torna incapaz de resistir à escolha do perdão.
         É a alma que possui a sabedoria da essência – pelo que não há contraposição radical possível do ser ao ser, da essência à materialidade, dos acontecimentos à efetividade, dos princípios à sua contaminação recíproca, na sua precipitação ao conteúdo da experiência que é somente em que eles se tornam pensáveis. Há, sim, um intervalo impreenchível do ser inscrito na letra ao pensar, do ser ao saber da palavra.        
       Complementaridade, aparentemente circular: do princípio ao relato onde ele se desconhece como tal, economia da palavra que deve trazê-lo à afirmação do efetivo; e do ser  ao histórico do acontecimento, que se duplica num pensável em termos do inteligível ou princípio, a ideia.
       Essa afirmação, contudo, a palavra falseia, ou instaura na ambiguidade, enquanto a afirmação se efetua na experiência - nesse caso, do perdão. Ela falseia necessariamente, pois não pode dizer a duplicidade do acontecimento e do que nele se libera senão como ideia, pensável. O princípio é deus e Eros; se ele atua a reaproximação, a ideia é sua face compassiva que une os momentos do relato no desfecho feliz que o realiza enquanto amor. Mas o acontecimento é o cancelamento da transgressão, se é que houve alguma. Pois, podemos ler como se o que tivesse tido lugar fosse a errância do Eros, figurada na aventura da alma e suas obrigações impostas no afastamento. Confusão do Eros: ele se pensa como posse e domínio, como unidade da voz que proíbe o desejo autônomo e comanda o sentimento alheio, mas precisa aprender que amar é dom da alma que cede por ser impossível não ceder, que participa dos dois domínios, sensível e inteligível, e se espelha, que só se compreende no elemento da alteridade.
            Alma elevada a princípio: ser da alteridade que espelha o trajeto do outro. Experiência da pertença, Eros: em vez da identidade tautológica do princípio consigo mesmo, na exterioridade de que não há inteligibilidade.
           O impensável da alteridade foi transposto da filosofia à letra do mito, mas não sabemos se é isso o que desde sempre o mito inscreveu. Tudo parece contribuir para interpretar o mito de Eros como a inserção da alteridade no incontornável pensamento do desejo, pois esse mito é ao mesmo tempo o da Alma. O mito de Eros contrapõe-se ao mito de Vênus. Neste o caráter explícito do desejo vai contra as aparências de que se trata da tematização da alteridade.
           Inversamente, há um ingrediente exibicionista no mito de Venus que não consta no mito do Eros. O desejo não é propriamente desejado quando se trata de Venus, ele é imediatamente o cumprimento e a necessidade desse cumprimento. O desejo é reinserido na tautologia do princípio. Ser desejado dependeria do desejo ser atribuído a uma alma/sujeito que deseja, dependeria desse risco da transgressão e da errância, dessa duplicidade entre o ser e o saber que posiciona um intervalo, um movimento, em vez da tautologia, entre o desejo e o Amor que aceita conceber-se desejado por outrem sexuado, por outrem existente.
         Alma faz ver o Amor, mas o que vemos não é o princípio tautológico do querer, é a alteridade da alma inscrita na trajetória do amadurecimento do Amor, ou da sua essencialização que não pode, justamente, estar dada no princípio, pois depende desse outro, dessa alteridade, da subjetividade que é Psiquê a subjetivar Eros que se torna o sujeito do perdão, ou seja, sujeito do reconhecimento de Psiquê como outrem amado e amante, em vez de apenas objetivamente possuído.
         Eros anímico, o caráter dos princípios se relativiza para tornar pensável aquilo que a interpretação neoplatônica havia se dado por tarefa colocar do lado do impensável, do indesejável desejo de um sujeito – alma tendente à matéria, em vez de ao princípio, etc. Eros, duplo sujeito, eis o vinco ambíguo dobrado sob o relato mítico, da palavra à letra e ao que ela inscreve.




          A categoria da interpretação tem estado sob rasura – do mesmo modo, para alguns, que para outros a ideologia. Ela nos impõe um dualismo do significado e do signo. Seu jogo reside na reserva dúbia entre uma semântica restritiva da materialidade do signo, que só está aí para encobrir o significado; e uma pragmática que não sabemos bem se deve ficar explícita ou implícita. Se a pragmática da interpretação se torna explícita, é para liberar mais categorias cujo papel é restringir o que o sujeito faz à coação semântica. Tudo o que ele faz é restringir-se à coação. Mas uma tal pragmática está sempre implícita como presença: a desse sujeito a quem se endereça o signo portador do sentido, ele também presença.
         Interpretação sugere uma mística do sentido. Ele é nebuloso, está oculto no texto, envolto no signo. Este não importa. Está anulado pela pragmática implícita, e no entanto sempre ainda por anular pela pragmática explícita – atuação das categorias relativas ao sujeito do endereçamento que posto, está para anular-se; categorias dessa anulação.
          Aqui a critica da interpretação chegou a um impasse. Seu pecado imperdoável: a pragmática implícita. A interpretação depende de que haja um sujeito do endereçamento, que haja sujeito em geral, que o signo não tenha vigência senão por que há sujeito independente do texto/signo. Mas a consequência indesejável, pelo que isso é pecado, pelo qual isso não devia ser assim, é a pragmática explícita por onde a anulação do sujeito na interpretação propriamente dita, na recuperação do universal sentido jazente unicamente no texto/significado.
          Mas não é da crítica essa culpa, e sim da interpretação – poder-se-ia retrucar. Ou do sujeito; ou de toda economia do signo como portador de significado, do texto como depósito do sentido de onde o sujeito tira sua necessidade propriamente hermenêutica. Se há sujeito, ele é sujeito da interpretação. Ele compreende, mas por que está do lado de cá do sentido, não do lado de lá do texto/signo. Mas a interpretação só é necessária por que há signo, e assim ao infinito do círculo da subjetividade.
          O sujeito instala-se na transcendência. Aqui o que existe é ser/linguagem, a pragmática implícita dessa linguagem que se endereça, que só funciona endereçando-se a algo acima, na exterioridade ou na borda, ao olho que observa e compreende, ao sujeito da experiência possível. A linguagem, o que ela atua é a compossibilidade, mas não desde um vazio de sentido no qual ela escavaria sua mecânica, muito inversamente, dessa cumplicidade dos sujeitos nela e acima dela, vigentes “aí” e transcendentes a todo signo situado somente “aí”. Ao fazer-se na transcendência, no endereçamento, na sua anulação, a linguagem diz somente e sempre a realidade do sujeito transcendente, mas quanto a este, só é posto para anular-se como sujeito da linguagem
          Compossibilidade como cumplicidade, impossibilidade do cálculo universal deslocado pelo sujeito universal, presença do sentido, pragmática explícita, tudo isso é uma visão da história. Onde se dá a cumplicidade e o porquê da pragmática, não só da semântica, ainda que aquela esteja construída inteiramente no pressuposto desta. O sentido se desloca ele mesmo, se faz histórico, por que os sujeitos mudam de sentido na experiência, na transcendência a todo signo.
          Mas a linguagem sempre já condiciona o deslocamento – isso é História, o que está regrado pelo sentido, o que permite conceituar a experiência com sentido, o que impõe a apreensão do sentido na experiência. Ou isso é existência tal que um deus só pode ser, em vez de nesse sentido existir, por que o deus é sem mediação do signo, sem variação de linguagem. Ele fala o universal na exterioridade de toda língua especificável, ele fala o resíduo do cálculo, o significado antigo do universal (idea). Ele só, para falar adequadamente, atua, enquanto nós, como almas, falamos, isto é, indagamos continuamente do sentido e com isso nos portamos na transcendência que deixou de ser a idealidade, que se tornou movimento do sentido sobre todo jazer do signo.
           O deus atua o mito, ele é sem mediação linguagem – tudo isso que aprisiona a interpretação do mito como uma saga do deus-idea, tanto mais que o que a ideia agora deva autorizar é o transporte do que atua à nossa possibilidade de fala. Compreendemos a ideia não mais como ideal, e sim como nossa experiência possível na e com a linguagem. A existência restou potência na variação dessa experiência, mas enquanto nada resta na exterioridade do sujeito da experiência, não há risco algum dessa variação transbordar o ato que põe a linguagem na transcendência, ao mesmo tempo como ser e como existência.
          Ora, a transcendência só diz o sujeito. A interpretação só se justifica para o sujeito na transcendência. Mas se tudo o que temos é a restância da letra, como é que ainda poderia haver interpretação – de onde é que surgiu a transcendência? Nada na letra a instaura, não havendo como contrário desse nada alguma possibilidade ainda. Nunca inserimos o oposto desse nada como podendo ser tudo, note-se bem. O oposto do nada seria alguma coisa, alguma possibilidade da experiência na exterioridade da letra e ao mesmo tempo no que ela encobre, no seu mais íntimo. No seu intimismo - definimos assim contemporaneamente a saga e a linguagem. A transcendência. O sujeito.
           A transcendência, movimento da ek-sistência, é o mais íntimo, é interioridade. O deus recusa intimidade; devemos descartar o signo. Nesses dois aportes, contudo, o que há é a contrafacção da oposição do antigo e do atual, pois trata-se entre os dois aportes um mesmo, quando devia haver um outro. A crítica mais radical à interpretação.


II)

        O deus recusa intimidades: ele é, sem mediação do signo, o sentido e a saga. Nós devemos descartar o signo, para na transcendência portar o interpretável, refazer o caminho e contar a saga a cada vez que se pronuncia linguagem. Nessa transcendência, na nossa intimidade e enquanto sujeitos, anulamos a mediação. Os dois extremos do ser e do existir tornaram-se um e o mesmo. O dualismo resulta apenas de uma noção mal construída que afirma o que de fato não sustenta. Ela sempre já pressupõe que a fronteira está entre o signo e o significado, entre a letra e o sujeito. Que existe o sujeito, antes ou na exterioridade da letra. Que o que existe aí é sempre já sujeito: destinatário e atuante da interpretação da letra.
           Em vez da interpretação teríamos que ter somente leitura – aquilo que atua é tão somente a letra. Não na sua marca, mas na sua transgressão, na alteridade do signo sempre outro para o signo. Para o outro signo. Mas que restou da interpretação – enquanto signo? Se não instaurarmos o processo da interpretação, sua história, nós mesmos estamos atribuindo a ela um sentido na exterioridade da sua letra, nós a confundimos com uma sua leitura, nós a transformamos em uma hermenêutica. Há somente uma hermenêutica? Por que?
       Rasuramos a interpretação e escrevemos nesse lugar hermenêutica.
       Por hermenêutica inscrevemos o sujeito e a transcendência.
       Foi assim que rasuramos a interpretação, o sujeito e a transcendência, mas somente, quanto a estes, enquanto sujeito e transcendência da interpretação. Inauguramos mais um círculo, um contra-círculo, ou apenas percorremos ao inverso a mesma circularidade, quando havia um desejo inscrito de ruptura do círculo, um anúncio de que isso havia sido feito. Não aconteceu Nada. Nem o círculo, nem a ruptura. Inscreveu-se um movimento em torno da História, ou da ausência dela? O desejo na positividade de um processo em processo de instaurar-se na positividade do seu dever ser. É isso a que chamamos Necessidade: a positividade do que ela instaura, mas enquanto apenas esse instaurar-se da positividade, está o processo na transcendência? Ou no desejo? Ele deve responder à questão da sua Necessidade ou meramente instaurar-se e cumprir-se? Somos o sujeito dessa exigência dele ser, ou a atuação do seu vir a ser até aqui somente instaurado no seu dever ser? A resposta depende da letra ou da sua interpretação?      
           Para onde vai a Hermenêutica?



  3:             

                O autor e o heroi

    I -


        Na Estética da criação verbal, Bakhtin instala o romance no sentido realista da unidade de sentido, recalcamento da oralidade ou da indistinção de gêneros, no interior do que deve então ser o cosmos romanesco. Ele deve liberar uma totalidade objetiva que restitui ao leitor a experiência de mundo, o que poderia parecer corriqueiro, mas devemos lembrar que essa unidade naquele momento de eclosão do Realismo foi revolucionária.

       O mundo vinha bem fragmentado e disperso desde que o impacto das grandes navegações só fez ser acrescido pelas transformações no saber. Tudo culmina no século XIX como o momento em que coincidem pioneiramente, como notou Bakhtin, à junção cartográfica dos continentes, a cientifização dos saberes e a centralidade do Ocidente pela revolução industrial.

              

        Toda conceituação do romance em Bakhtin está dependendo da noção de exotopia do autor, definida como a exterioridade do autor em relação ao heroi e à estória que ele produz. A noção deve supor estar permanecendo mesmo no caso da autobiografia, pois sempre o autor se alteriza na linguagem. Não é que que ele se ponha como um outro para si mesmo, e sim que ele põe através da obra o sentido construído por ele mesmo como sua consciência objetiva, mas explicitado para os outros, os receptores.
       A noção se encaminha no sentido exigido por Bakhtin, de transpor a teoria da literatura a uma atualidade em que o objeto não pode mais ser considerado somente quanto à produção ou ao texto construído e tem que abranger a categoria da recepção. A obra tem que ser realizada como Exterioridade.  A exotopia do autor torna-se exemplar de uma significação pretendida por um sujeito: por um lado, a significação personificada pelo autor textual, por outro lado, a manobra estratégica de um autor empírico.
          Por meio da exotopia, Bakhtin aglutina sua posição teórica em relação a vários tópicos pertinentes aos estudos literários. A perspectiva mais geral que ele fornece da exotopia do autor é constituída como posicionamento exterior do autor em relação ao herói. Assim estendem-se as consequências da exotopia do autor, a sua necessária colocação de fora do personagem do herói que precisa para ele ser um Outro.
         O herói se torna tão importante na teoria russa, como em Dobrolyubov e Pisarev, e até mesmo Lenin parece ter visto no herói Rackmetov o seu ideal, por amalgamar as duas intenções do objetivismo realista, a manifesta como apresentação direta da realidade, e a latente, a lição sobre o que deve, então, ser feito.
           No rumo da concepção bakhtiniana do situamento do romance na modernidade, o Romantismo surge como enigma, recusado pensar por Bakhtin, por que para ele o lírico era a inadequação total à relação interior da alma consigo mesma, mas como vimos o que ele assinala como o momento histórico do séc. XIX é a objetivação do real para um sujeito que até aí, desde as Navegações, estava se movendo num mundo intotalizável do ponto de vista da consciência, mundo misterioso onde as fantasias religiosas misturavam-se a conhecimentos que já as impedia de parecerem como antes, saberes estabilizados, mas esses conhecimentos ainda eram parciais e não permitiam substituir as lacunares explicações dogmáticas.
            A argumentação sobre isso é notável. Inicialmente, Bakhtin afirma que por essa inadequação total, a forma lírica é completamente exotópica, o autor triunfa sobre o heroi sem conceder-lhe autonomia. Mas depois, observa que o heroi muito facilmente  “coincide consigo mesmo e é igual a si mesmo”. Até que num terceiro trecho não há exotopia de direito no romance do Romantismo, só uma exotopia interior, pois a espacial e a temporal não são construídas, não havendo “a conclusão de um caráter”.
        A exotopia em Bakhtin se constitui, portanto, numa relação constitutiva com a totalidade do sentido que o romance precisa circunscrever para poder ser suposto realizado como tal. O que pressupõe um situamento da alteridade que não pode se dispensar da representação.
         A constituição da exotopia espacial, projeção textual da figura do herói, coincide com a análise da produção, na consciência, da imagem que elaboramos de nós mesmos, e em geral, a relação do autor textual com o herói re-encena o locus da duplicação que é inerente ao desvelamento da consciência:  a imagem física e o ser interior;  a alma e o espírito; o espaço e o tempo; o eu do herói e os outros personagens do romance; o autor e o herói.
         Como a consciência já está pressuposta em Bakhtin ser uma unidade de representação da totalidade do mundo objetivo, todo o juízo relativo a modalidades literárias ou teorias estéticas que não subsume o fenômeno romanesco a esse objetivo não é visto como possibilidades ulteriores de conceituar a alteridade, mas simplesmente como ignorância dela.
         Kirkegaard se torna, aqui, uma referência importante ao nosso escopo. Ele assinala o momento de transição do romantismo, como o que estamos aceitando em termos de outro situamento da alteridade na exterioridade do pressuposto de subjetividade ou unidade de consciência objetiva, a esse realismo. O combate do cavalheiro da fé já é com a exterioridade, ainda que o que ele tenha querido preservar fosse o que então devia ser dado como o desvelar para-si do ser do sujeito. É assim que ele vai reinterpretar a ironia romântica, conceituando-a como devida à sentida intransponibilidade do hiato entre o interior e o exterior.
          No estudo de Bakhtin, na história da literatura o Romantismo é um dos momentos assinaláveis de crise do autor que é mais geralmente uma crise da cultura, quando “rejeitam-se os critérios imanentes a dado campo cultural”, e “não se pode ficar artista, não se pode entrar nessa esfera delimitada” como sendo a cultura.
           Essa crise se efetiva no romantismo por meio da ideia de “totalidade da criação e do homem” que deslimita as categorias da produção cultural que vimos cuidadosamente definidas. Os constituintes da exotopia, a distinção do autor em relação ao herói, do herói como dotado de interioridade/subjetividade em relação aos demais personagens que são só exterioridade/alteridade, mas a subjetividade do herói construída pela sua duplicidade seja ao autor, seja ao seu próprio exterior, são como que a substância ou materialidade da produção literária enquanto fenômeno atuante na cultura, sem o que, como Bakhtin considera o romantismo, trata-se de oralidade, não arte.
       Essa teorização vai excluir, portanto, duas vertentes que se tornaram muito habituais na leitura do fenômeno estético: aquela que privilegia o que é mais comum designar os elementos materiais do texto, a estesia do signo, o que Bakhtin inclui como um constituinte acessório de sua construção; e aquela que Bakhtin tematiza expressamente, e a qual se opõe diretamente, que ele chama teoria expressiva, como já deveríamos esperar, tratando-se das que valorizam o lírico e que ele define como a que se fundamenta no “ato de simpatia ou de empatia”.
           É curioso que aqui se reencontre a mímesis, como na “imitação simpática” de Groos. Já o que Bakhtin trata como estética impressiva, a do simbolismo e do romantismo, é apenas um outro modo de conceber a criação do artista como um ato unilateral. Ambas as estéticas, expressiva e impressiva, são representação, mas em que não se tem o que vimos Bakhtin situar como o que permite redefinir totalmente os componentes desta, a saber, a recepção. Na estética impressiva o objeto estético expressa uma ideia ou uma circunstância, mas centrando-se na atividade do artista como produtor de formas, o que torna ao criticado anterior do privilégio da materialidade do signo (autor sem herói, atividade puramente técnica). Em todo caso, o “amor estético”, aquilo que liga mais do que deveria o fenômeno à sua produção, é o que Bakhtin supõe de todo inadequado ao seu próprio objeto.
         Ora, nesse sentido, a representação criticada em Bakhtin torna-se mímesis, e é somente assim que deve ser negada como apropriada ao fenômeno estético. A exotopia, que se torna a noção substitutiva da representação inclui assim, de forma imanente, a recepção, por que o que se produz é sempre visto dessa posição de outro que no entanto é a do desvelamento da consciência para nós mesmos – o modo como constituímos as categorias da nossa auto-compreensão como subjetividade irredutível, não obstante atuando num mundo ao mesmo tempo povoado e objetivo, depende dessa função de alteridade.
           A recepção, conforme Bakhtin, é essa “segunda consciência” não neutralizável que pertence a quem toma conhecimento do texto, e impede que ele seja tomado por um objeto. A consciência do herói e somente nesse sentido, a interioridade que se constitui na obra enquanto o que pode por a objetividade, é também o que pode integrar os valores que são os comunitários.
         O romance realista não é para Bakhtin, portanto, o que conceituou Benjamin, como o trânsito do indivíduo necessariamente desorientado por que enquanto apreendendo-se nessa individualidade ele é o oposto do herói típico do ethos (tradição) de sua comunidade.
        Tendo se tornado o sujeito burguês da sociedade industrial, suposto único da história humana que se pensa individualmente, todo o trajeto romanesco desse sujeito pode resultar somente numa verdade do mesmo modo pessoal, a da sua própria e singular experiência, conforme Benjamin. Ele pensava a tradição das comunidades históricas não como dogmas de que o sujeito moderno teria se emancipado, mas como texto culturalmente intersubjetivo que fornecia um suporte para que cada membro da comunidade inovasse conforme o situamento do seu presente, tipificando esse processo com a dualidade característica dos escritos da cultura judaica entre texto canônico e os comentários que vão se acrescentando historicamente. Portanto, a recepção da cultura era sempre, na tradição, uma experiência comunitária, em vez de individual, e para Benjamin individual significava de fato incomunicável, sem sentido para outrem, ainda que o romance moderno ilusionasse estar apresentando uma trajetória significativa.
        Benjamin pensava que esse fechamento do romance burguês poderia ser contornado pelo descentramento narrativo, através de recursos polissêmicos, que iria permitir aos leitores co-produzir a obra pelo espaço assim liberado ao acréscimo do seu ponto de vista. Isso criaria um substitutivo moderno à perdida tradição comunitária, produziria um entorno cultural apto à recuperação do lugar da crítica social e do ajuste  histórico ao presente. Desse modo, Benjamin está se colocando num parâmetro já modernista, em vez de Realista, a propósito da expectativa estética.
         Mas vemos que é complexo supor que o Realismo de Bakhtin é realmente infenso a um encaminhamento como esse, a propósito do que seria a boa obra de arte moderna. Pois Bakhtin está justamente defendendo para esta a estipulação de produzir uma experiência cultural autêntica de sua recepção. Contudo, o que ele valorizava como suporte dessa experiência  era justamente o fechamento do caráter do herói, a captação da totalidade que o herói integra constituindo o mundo dos valores que ele problematiza.
       Para Benjamin, não há o herói moderno, por que em todo caso, ele não pode encenar a tipicidade da tradição, há um substitutivo dele se a obra chega a preservar sua abertura à interpretação. Inversamente, conforme o critério de Bakhtin, o herói é a interioridade que os outros personagens não tem, atuando apenas por sua relação ao herói. A exotopia do autor nomeia, assim, não a condição de exterioridade do signo, mas a pré-condição da interioridade ser encenada por meio do herói, e o que se encena é a constituição dessa consciência em-si e para-si.
          Conforme Bakhtin, o heroi moderno é o duplo do autor textual. Quando o autor encena a aparência do herói refletida no espelho, essa aparência é um aspecto da duplicação mais fundamental do autor no seu herói. Nesse caso do espelho, como na auto-descrição, a interioridade se exterioriza para si mesma, e a imagem refletida de si encena o julgamento alheio sobre si.
         Está aí, na exigência da Alteridade, o a priori bakhtiniano da objetividade. Não no cientificismo, no tratar a exterioridade como dado para uma consciência toda ela pensada como meio de neutralidade, mais o poder de categorização pelo saber. Nessa via, a consciência é uma unidade frente ao mundo para a qual tudo o que lhe vem deve ter o caráter de objeto. Já o que Backtin reprova nos românticos é desconhecerem a espessura entre herói e autor, uma vez que equivale ao desconhecimento do hiato entre realização estética e vivência direta, experiência humana. Mas se tratarmos a consciência como transcendência,  segundo ele, temos que ela é algo vindo de – indo para – o Outro.
            Como terceiro termo, após a arte como meio de contemplação da Ideia-forma universal antiga e a arte como meio de contemplação do Símbolo envolvido na construção da forma do devir universal romântico, teríamos o Realismo como meio de objetividade cuja realização em devir é o valor, universal somente enquanto histórico-social. Ora, a realização estética teria, na Antiguidade, o cânon e a convenção como procedimentos, no Romantismo o objeto estético provêm de realização na reflexão, enquanto o Realismo encontraria sua realização técnica na observação da exterioridade. Para Backtin é esse transvazar do valor que impede que se limite a compreensão da arte no formalismo, no mero aspecto de seu envolvimento técnico com o material.
              Mas, em todo caso são Valores que não podem ser tratados fora dessa concepção transcendente da consciência, o que impede que caiam na rede da mera prescrição de uma subjetividade de autor que se pensa objetiva apenas devido ao seu “excedente cognitivo”, sua incorreta identificação de saber científico, objetivo, com garantia de correção moral. Vemos assim como a colocação de Backtin poderia ser perigosa para o seu estatuto de cidadão soviético. O discurso marxista ortodoxo tinha por pressuposto exatamente essa identificação. Como se sabe, nem sempre Bakhtin assinava seus estudos sobre a linguagem, que circulava sob o nome de outros,  pois a censura soviética era severa, mas os intelectuais privadamente consideravam fundamental que os seus estudos fossem conhecidos.
               Ora, nesse sentido, a representação criticada em Bakhtin torna-se mímesis, e é somente assim que deve ser negada como apropriada ao fenômeno estético. A exotopia, que se torna a noção substitutiva da representação inclui assim, de forma imanente, a recepção, por que o que se produz é sempre visto dessa posição de outro que no entanto é a do desvelamento da consciência para nós mesmos – o modo como constituímos as categorias da nossa auto-compreensão como subjetividade irredutível, não obstante atuando num mundo ao mesmo tempo povoado e objetivo, depende dessa função de alteridade. Mas a representação na modernidade, no sentido foucaultiano, que já está a meu ver suportado pela represent-ação heideggeriana, consiste precisamente nessa disposição de si por um outro objetificado e que o objetifica enquanto outro, a qual deve mediar a totalidade do mundo em si e para si, fora de que não se presume haver ser humano ou interioridade dotada de sentido.

          Em  Bakhtin, a exotopia do autor se conceitua como uma noção axial à literatura pelo fato de que o autor manipula todas as circunstâncias da obra, importantes ou secundárias, tendo em vista o todo. Na sua concepção, a teoria da arte como expressão simplesmente ignora esse a priori, e desse modo Bakhtin opõe esse tipo de teoria à sua exigência da análise da recepção quando se trata de pensar a produção estética.
          O estatuto do todo, porém, vai estar justificando uma expectativa fundamentalmente Realista, no sentido de objetiva, da obra de arte. Se o a priori dessa realização é a exteriorização do autor, sua exotopia em relação ao herói, é porque o autor se dirige imediatamente ao todo do que elabora. O que serve agora  a Bakhtin para contrapor-se ao subjetivismo romântico. Este iria supor que o horizonte da obra não é algo como uma totalidade, mas como o que me parece designável em termos de hiância, uma vez que o que a obra romântica veicula conforme Bakhtin, é uma experiência toda interna a que a exterioridade faz problema, permanece como um elemento opaco até revelar-se a própria exterioridade no horizonte da obra como a verdade do interior que permanece então o único fator inteiramente acessível ao foco narrativo.
          Backtin enuncia o construto da Exterioridade como critério de objetivação ética e estética, após caracterizá-la por esse a priori do Outro, o herói em relação ao autor. A Exterioridade nesse encaminhamento bakhtiniano não é de modo algum pólo objetivo para uma consciência neutra, mas construção imanente à obra. Ele a estende a aspectos da realização estética como aparência física dos personagens, o espaço onde se movem esses Outros, enquanto personagens dados na observação do autor, e o aspecto dos atos descritos.               
        Especialmente este último é interessante pois aqui ele invoca a teorização de Bergson segundo o que não existe a possibilidade de execução de um ato totalmente externo a nós. Nossos atos são vividos interiormente de modo que supor a extensão deles com as coisas, supô-los que são atuados como aparecem a um observador externo, interfere com a sua execução. Já na concepção de Backtin,  só a exotopia do autor, sua posição de observador externo em relação ao personagem, permite que o ato seja descrito, literariamente realizado. Isso implica detalhado exame dos casos em que o autor se coloca como personagem, na autobiografia, por exemplo. Em caso algum ocorre que Backtin se desvie desse princípio de exterioridade do autor, basicamente em relação ao herói, como critério de objetivação enquanto princípio fundamental da criação artística.


 4 :    O Realismo literário



     I -    

              A conceituação periodológica do Realismo coloca questões não já suscitadas na ambientação do Romantismo. Neste, o problema praticamente se resume à variedade de significações, como se a polissemia do termo acenasse à intenção irônica que era a chave da penetração do real refletido e reflexivo conforme o espírito dos seus teóricos. Mas como devemos indagar o que é o realismo?
         Se escolhemos começar por perguntar que é o Real, se afinal é ele o núcleo de que deriva o termo, corre-se o risco de extrapolar as possibilidades de história e crítica. Mas talvez devêssemos apenas lidar com o estado de espírito, a disposição da mente que acolhe o seu destinar-se ao Real – provisoriamente aceitando-se que a banalidade da palavra acena ao nosso poder de subentendê-la. As coisas se complicam ainda mais, nesse caso. Como no exemplo algo jocoso de Welleck, um crítico poderia tomar por realismo a qualidade estilística encontrada na técnica do fluxo de consciência, tanto mais real quanto intimista, idiossincrático e impressionista for o resultado, de modo que os realistas autênticos seriam mais Joyce, Virginia Wolf e Faulkner do que Flaubert ou Zola, se considerar como a única realidade “a experiência subjetiva”, como efetivamente ocorre com R. Brinkmann (Wirklichkeit und Ilusion, 1957).
          Welleck situa bem o problema. Após uma incursão pelos significados do termo Real em filosofia, desiste de apreendê-los ou ao menos de torná-lo útil na consideração estética. Inicialmente porque o sentido estilístico mais lato que se poderia aplicar, de fidelidade à natureza, é algo praticamente constante na história da arte, desde a Antiguidade. Por esse viés seria difícil apreender em que ele difere do classicismo, e aliás em que ele desponta como algo caracterizável mais costumeiramente no segundo quartel do século XIX, já que qualquer manifestação artística inclui um senso de retratação do real, ao menos até a emergência da Vanguarda – e mesmo nesse caso seria complicado afirmar que esse traço inexiste, quando o cubismo é tão comumente definido como a ampliação dos poderes de captação do modelo, incluindo transição e movimento aí onde a perspectiva “piramidal” clássica só podia mostrar um dos seus aspectos.
         O termo “Real”, por exemplo, é muito praticado no Romantismo, onde se o emprega ambiguamente, como parece ter sido o caso de Schlegel, ora em sentido puramente estilístico, temático, quando se trata de aplicar em estética o famoso dito do Schelling de 1795 que o definiu filosoficamente como a postulação da existência do que é exterior a nós, " a existência do non-Moi"; ora de um ponto de vista mais originalmente enraizado na prática da teoria da arte, onde, paradoxalmente, é a expressão poética do idealismo filosófico.
        Mas nisso, como o trecho de Welleck assinala bem, oscila-se entre a apreciação desse valor. Schiller, ao creditar o realismo aos franceses e o idealismo aos alemães conclui ser impossível uma poesia realista, enquanto Shclegel, ao identificar idealismo e realismo, parece estar apenas deslocando o sentido anterior, mais costumeiro, deste último, não para conceituar algo como a natureza do todo do real, mas para definir sua acessibilidade ao Eu (Moi), através da Ideia.
        Em todo caso, nesse momento, realismo não significa um estilo em particular, Welleck informando que esse sentido do termo, especificamente em literatura, foi introduzido somente a partir de 1826, quando o Mercure de France alude a “essa doutrina literária” que progressivamente estava se impondo no ambiente intelectual.
           Mas a questão que examinamos se torna mais adequadamente situada quando, após expor a cena internacional de recepção do estilo ao longo do século XIX, de modo que vemos que há muita variação sobre o que ele vem a ser ou sobre sua importância real conforme o país – até chegar-se aos dois extremos de Rússia, onde “o realismo é tudo”, e Alemanha, onde não houve praticamente “movimento realista auto-consciente” – Welleck a enuncia com precisão em termos da oposição entre “descrição e prescrição”, didatismo e representação objetiva.
            O que ocorre assim é um fato curioso. Obviamente a indagação sobre o Realismo é complexa – por que não se poderia caracterizar a índole do estilo através da expressão de Bréhier denotando o “novo espírito” anti-religioso e anti-metafísico, a um tempo tão  “frio e sóbrio” quanto “claro e positivo”, entretanto aplicada à ambientação dos séculos XIV e XV? Mas não há qualquer dúvida sobre a “concordância perfeita”, por sua vez “cansativamente monótona”, instaurada acerca das “principais características do Realismo” dado como fato consumado de um estilo praticado e reconhecido pela crítica do século XIX. Impessoalidade e Objetividade são os traços essenciais que denotam, respectivamente, transparência, o ego do autor não podendo ser rastreado na narrativa; e o que lhe é correlato, a retratação pormenorizada, à minúcia, do modelo.
           É certo que ainda hoje se pode encontrar essa concordância nos manuais, tanto quanto o fato de sua origem ser o consenso francês. Mas não somente a complexidade da cena internacional interfere com essa estabilidade. Flaubert sentia-se ferido com o termo aplicado a si. Tolstoi ensina, julga, exorta.
          O problema filosófico do Realismo literário consiste nisso: apresentar a realidade como se a sua acessibilidade pudesse ser garantida na exterioridade de qualquer julgamento de valor depende, ou não, de algum julgamento implícito que seleciona não só aquilo que deve ser apresentado, mas também como deve sê-lo?
         Os “Realistas” seria o termo pelo qual  entendemos escritores que ao menos na parte percentualmente mais representativa de suas obras, parecem ter acreditado que não. Mas como foram conduzidos a isso?
         Quanto ao problema estilístico, parecer ser possível distinguir bem a produção dessa época do classicismo ou do romantismo, assim como da mera existência do traço retratador ou figurativo que povoa a história da narrativa ocidental. Contudo, conforme Welleck mesmo nota, se no classicismo incluirmos a produção literária do século XVIII, a distinção já não poderia ser tão nítida, havendo uma continuidade indubitável “tanto em ideologia, quanto em método artístico” entre esta e o que é canonicamente designado o Realismo do século XIX.
         Welleck habilmente manipula uma fórmula, tão vaga quanto se queira, para designá-lo. Realismo significa “a representação objetiva da realidade social contemporânea”. Esse enunciado aparece duas vezes no texto, na entrada do cerne temático e na conclusão. Se nesse fecho concorda-se que ele soa “desconcertantemente trivial”, no início sendo apresentado apenas como “algo muito simples”, no entremeio alguns núcleos definidores foram engenhosamente inculcados, basicamente os de “tipo”, “objetividade” e “fundo histórico”.
         Isso não implica que se esteja renunciando ao enfrentamento da manifesta contradição que os escritores não resolveram entre prescrição e objetividade. Apenas Welleck é ótimo crítico literário, de modo que seu ofício, apresentar a realidade histórica do estilo de época Realista, se cumpre através da estipulação de categorias adequadas. Isso, tendo ele já aceito que o conceito de período pode ser salvaguardado dos dois perigos que o espreitam, a solvência no mero nominalismo que o considera como puro rótulo ao arbítrio de quem o usa ou a deificação dos períodos como entidades quase-metafísicas “cujas essências só podem ser conhecidas por intuição”.
        Assim, como veremos ao examinar essas três categorias aplicadas por Welleck como adequadas ao Realismo, pode-se mostrar que a rejeição da metafísica não implicou a rejeição do moralismo e do reformismo, mas que isso está implicado no modo como elas foram dispostas. Ora, o problema filosófico que reflete a contradição entre prescrição e objetividade, resta assim intocado por esse viés. Será preciso examiná-lo alhures, já que sua magnitude não pode ser ignorada.

      
 II -



             É provável que os problemas que se impõem a um pensamento da estética, assim como a enformação contemporânea da questão da Verdade, tenham surgido com o Realismo estendendo-se como configuração de um período, uma ambiência intelectual que inclui o estilo artístico, mas não se esgota nisso.
Considerando a discrepância entre o modo como rimos de Dom Quixote porque ele toma as narrativas de Cavalaria como relatos verídicos, e aquele pelo qual não consideramos de modo algum os imitadores reais de Werther como tragicômicos, somos solicitados a interrogar o que ocorre no intervalo para suscitar uma transição tão notável.
             Backtin assinala o pormenor da influência da obra de Goethe ter sido recebida pelos contemporâneos como portando referências que deviam ser ancoradas numa prática do real, assim o exemplo do culto local da peregrinação ao “Muro maligno” , localizado no conto infantil O novo Páris entre os muros de Frankfurt. Ora, tais lendas localizadas praticadas pelo público receptor do romance moderno datam da segunda metade do século XVIII, e marcam a penetração de obras de autores como Rousseau, Richardson e Karamzin.
              Conforme Backtin esse fenômeno de uma localização geográfica concreta e visível no interior do mundo romanesco – o acontecimento se torna atuado num lugar real e num tempo real – significa a transformação da relação entre imagem artística e mundo, determinada pelo fato de que esse mundo é “novo” no sentido de ser somente agora inteiramente mapeado, localizado, ele mesmo “geográfica e historicamente concreto e visível”. Poder-se-ia objetar que o dado não se refere exclusivamente ao estilo Realista, que aliás não é geralmente assumido por Backtin como objeto específico de sua defesa – mas é sintomático que esteja o tópico sendo tratado no interior de uma história do Realismo que focaliza o papel decisivo do romance de educação.
              Conhece-se o espinhoso problema que o Realismo representa para a teoria russa no momento em que se torna dogma da ditadura do proletariado. A degradação do estilo, como Welleck acidamente escreveu, “quando o romancista tentou ser sociólogo ou propagandista, produziu simplesmente má arte, arte grosseira”, confundindo “ficção” com “reportagem” ou com “documentação”, não sobreveio devido à rigidez de suas convenções e exclusões, ainda que estas houvessem sido negadas sob a premissa de que se estava apenas penetrando na realidade crua assim como toda arte desde sempre propôs, mas deixando-a aparecer, inversamente a ocupar tudo com as convenções do belo. E sim devido à possibilidade, não imediatamente previsível, de “perder toda distinção entre arte e transmissão de informação ou exortação prática”.
           Por outro lado, naquele âmbito soviético, denunciá-la ou mesmo apenas focalizar as convenções do estilo de modo a inviabilizar o seu protesto de transparência poderia acarretar a perseguição política promovida pelo Partido tanto quanto, da parte da crítica, ser tratado por idealista.
           Há uma nítida oposição entre o princípio clássico-antigo da verossimilhança, ao qual se associa o de arte como mímesis, imitação do real, e o que agora se compreende como compromisso do artista com a revelação da verdade ou a apresentação do concreto. Mesmo antes de nos determos sobre isso deve-se notar como a injunção presente cala fundo na consciência do intelectual.
           Na metade inicial do século XX, quando compreender as limitações do Realismo-Naturalismo havia se tornado simplesmente necessário e incontornável, é muito comum observar-se a oscilação dos críticos, como Backtin ou Benjamin. Pois o que se considera o seu oposto, o idealismo, continua devendo-se rejeitar como algo menos do que o aclaramento da Verdade e esta não se considera, desde o século XIX Realista, destacada do entorno histórico-social.
          Bakhtin resume o posicionamento que lhe é contemporâneo considerando que ele mesmo não está se colocando “no plano do debate que opõe o idealismo ao realismo”, assim como se singelamente contrastasse favoravelmente, à crítica da pretensão de uma criação estética e ao mesmo tempo repetidora da vida real ou possível, a “transfiguração idealista da realidade pela arte”. Mas há um motivo pelo qual não se pode também descartar a veiculação desses autores a uma premissa Realista. É o fato de que manter essa rejeição, mesmo num viés crítico do que se lhe opõe, não está de todo, a meu ver, independente da constituição de uma noção de Verdade que se deve ao Realismo como período histórico e de que todo o comprometimento da metade inicial do século XX não conseguiu se desvencilhar.
          Essa constituição é muito proveitosamente construída teoricamente pelas três categorias de Welleck, o tipo, a objetividade e o fundo histórico. Examiná-las provará sua utilidade, não só quanto a esse questionamento da Verdade, mas como noções usualmente fundamentais na Teoria da Literatura.
         Ocorre na apresentação de Welleck, contudo, algo curioso. É que ventilar as categorias em proveito de uma explanação do conceito de Realismo só se revela algo relevante quando elas perdem o seu contorno individual e se reportam umas às outras. Assim, temos a noção de “tipo” inicialmente apresentada como diferindo daquilo que até então se tratava em termos de “caráter”. Ora, o problema nesse caminho não é só a oscilação terminológica desses termos, mas o fato de que para cada tentativa de estipulação coerente apresenta-se uma objeção do interior mesmo da produção crítico-literária da época. Só quando ligamos “tipo” a “objetividade” é que compreendemos como é que podemos opô-lo a “caráter” como algo característico do cenário Realista. E do mesmo modo, para a transposição da “objetividade” em relação à verossimilhança e mímeses, será preciso contextualizar o “fundo histórico”.
       O "tipo" emerge como algo de crucial importância para a teoria e prática do Realismo sobrepondo "caráter" como algo que será doravante tido por associação com traços individuais. O "tipo", inversamente, será um modelo social destinado a ser imitado na vida, mas essa consequência parece mais derivar da técnica puramente descritiva com que se o constrói. Em todo caso, o "tipo" tem essa conotação de um valor social, não podendo ser compreendido, qualquer que seja a intenção ao fazê-lo, fora dessa inserção. Por exemplo, Taine examina os caracteres nas fábulas de La Fontaine com o objetivo de localizar os tipos que ele mesmo, Taine, especifica conforme a estratificação social.
          Pode-se ver o interesse realista da questão. Quando Belinski, escrevendo sobre Gogol num artigo de 1836, já enfatiza o termo, mas num sentido romântico, pensa os tipos como figuras com significado universal. Contudo, se essa significação não pode deixar de implicar uma conotação prescritiva ou exortativa, moralista ou ética, não se trata da mesma ideia quando o produto artístico resultante deve proceder de uma observação social objetiva ou quando, como ainda no Romantismo, está relacionado com a problemática da criação estética do Símbolo.
            É por isso que só entendemos bem do que se trata quando estendemos o contexto da “objetividade”, a prescrição pela qual o autor precisa se apagar completamente na obra de modo que ele jamais surja como “esse corpo opaco e intrometido, atravessando-se no caminho e eclipsando o sol da verdade e da natureza” como um Byron ou um Wordsworth na concepção de Hazlitt. Este exalta, inversamente, a criatividade onipresente de um Shakespeare pelo mesmo motivo por meio do qual Keats definiu o caráter poético, não ter “ego”, ser “tudo ou nada”, sentir “o mesmo deleite em conceber um Iago e uma Imogênia”.
          O problema aqui, porém,  é que a ausência do autor não esgota o sentido da objetividade como um critério realista, seja porque há autores bastantes representativos do estilo que não cultivam a transparência narrativa, sendo o caso de George Elliot e Troloppe assim como o já citado Tolstoi, seja porque a ilusão do ficcionismo, aquele efeito de representação fiel da realidade pelo que a impressão inicial da leitura é sempre a pronta identificação do leitor com o mundo romanesco como se fosse o seu mundo, o mundo real, não depende da transparência e está presente na ironia romântica, por exemplo.
          Ocorre até mesmo que certas narrativas não transparentes, repletas de marcas de enunciação, transmitem personagens que nos parecem mais reais – como Sancho Pansa ou tio Tobby – do que algumas outras que se pretendem como puramente objetivas.
          É então que o "fundo histórico" localiza a premissa de "objetividade" melhor que o simples apagamento do autor, ou melhor, explica essa exigência. Seria impossível um Julien Sorel sem o contexto da França da Restauração, e o que se designa o apagamento do autor na verdade se define por contraposição ao papel que este detém na teoria romântica da arte como meio de reflexão. É a exterioridade, não se presentificando sem ser histórica e social, que surge no Realismo como o real meio da arte.
       Compreende-se então a inserção do "tipo" no realismo. Ele tem uma significação universal somente enquanto historicamente situado, e essa localização só se obtém no romance através do apagamento do autor.
       A subjetividade se apresenta assim profundamente revertida em relação ao modo como foi suposta no Romantismo. Paradoxalmente, parecem ser as mesmas premissas que sustentam ambas as interpretações, o que Backtin também deixa entrever. Ao longo do século XIX constitui-se uma consistência de pensamento cujo fundamento é a consciência. Esse o profícuo viés da temática da subjetividade na extensão da vitória da burguesia. A relação entre consciência e subjetividade é evidente, mas não óbvia. Ela foi, efetivamente, interpretada desses dois modos fundamentais, romântico e realista, mas sem que o objetivo deles deixasse de ser o mesmo, a saber, reduzi-la a um fator gnoseológico pelo que tudo que se apresenta é um objeto seu.
           Nesse ponto a exposição de Backtin irmana o que se produz de cultura filosófica desde o século XIX, sendo que ele designa essa consciência gnoseológica como consciência científica, o que a meu ver permite notar como ele está estendendo uma certa unidade de pressupostos entre idealismo romântico e Realismo. Assim, o que para ele é o mais pernicioso para a realização estética, o comprometimento da exotopia do autor, algo que poderíamos de um modo superficial definir exatamente pela categoria de objetividade, pode ser apontado em ambos os estilos, ainda que não pelo mesmo motivo.
           Backtin fará do desdobramento dessa crítica para os dois casos ocasião para contrapor-se à concepção, inicialmente romântica, de arte como expressão, mas também àquela mais formalista, de arte como realização sobre o material. No caso do Realismo, porém, o problema é uma espécie de abuso da exotopia. O autor não apenas se compreende pela sua exterioridade em relação ao personagem, sobretudo o herói, exterioridade que o artista romântico pretende, de certo modo, inexistir. Ele faz degenerar a exterioridade artística para uma de tipo ético – o herói não é apenas um Outro que somente assim pode ser tratado como um fenômeno na inserção de um acontecimento acabado por meio de um mito ou narrativa, no Realismo ele se torna como o próximo do autor que se auto-apreende como pessoa empírica, ou seja, resvala-se para o prescritivo quando se tratava da criação estético-objetiva da apreensão do Outro.
          Assim, temos dois tipos de comprometimentos da exotopia. No caso do Romantismo, por total indiferença a ela; no Realismo por sua degradação. Ora, a construção do conceito de exotopia do autor, a meu ver, deve muito à concepção realista em arte, pois fundamenta-se como objetividade, inserção histórico-social e compreensão da impossibilidade de auto-apreender-se, exigência de alteridade como meio de exteriorização. Ainda assim é preciso situar a crítica de Backtin ao Realismo, e por aí encontramos a conexão entre o cientificismo que caracteriza o momento positivista na segunda metade do século XIX e a crítica fenomenológico-hermenêutica dos inícios do século XX.
           Vemos como se abandonou formalmente a concepção antiga da arte como regendo-se pelo princípio de verossimilhança e pela imitação do real. Nela o que se tem é aquele elemento de contemplação cujo termo é a forma inteligível. Ideia-forma universal que não subsiste como tal na concepção romântica do Símbolo. Este, porém, é o que lhe seria mais próximo, inversamente à Ideia a realizar pelo meio de reflexão que é a arte, pois o símbolo é estático, se bem que produzido pela cultura, enquanto a Ideia não pode mais, como vimos, ser separada de seu devir, o que está completamente vedado à compreensão antiga. Mas é por isso mesmo que o papel do artista se torna tão importante e que o objeto da reflexão não pode ser considerado separadamente do seu meio. A prática ou realização estética é inteiramente misturada com a evolução e o caráter do artista, com sua inserção no devir e seu investimento na cultura, assim como seu situamento aí.
             Também o objeto se transmuta, pois o correlato da ideia-forma a ser contemplada através da arte na teoria clássica, não se transvaza pela simples reprodução ou representação do real. A imitação é rigidamente controlada pelas leis da realização da forma enquanto estética, enquanto a solvência da forma como esse correlato do cânon é a premissa romântica da introdução do devir na realização da Ideia.
             Muito do que Backtin vai contrapor a essa teoria da arte como expressão da individualidade, mas na verdade do devir, do artista, já está implicado na crítica realista do romantismo e a meu ver poderia ser lido como uma introdução geral ao Realismo, mas há uma sutil transposição, efetivamente. Assim, considerar o romance como veículo moderno do Epos como vimos ser o caso em Backtin, tem a ver com a definição do romance realista na época de sua emergência.
            Como informa Welleck, F. Schlegel havia sugerido o romance como um modo de ser todo subjetivo, contrastando com o epos e o drama, objetivos. A prosa torna-se lírica para poder servir como o ideal da poesia. Mas aqueles autores que, depois, desejaram essa objetividade para o romance, como Flaubert e Henry James, tiveram em F. Spielhagen um porta-voz crítico que jogou a identificação da epopeia com a objetividade para o lado do louvor, nisso valendo-se de uma longa linhagem de entusiastas. O que Backtin lança na obscuridade, porém, é aquele lirismo, como se ele não houvesse sido importante na forma do Romance que é o principal objeto de sua preocupação uma vez que, como na teoria russa em geral, conforme notado por Welleck, surgiu uma preocupação quase que exclusiva com o tema do herói.
             Nesse tema é que se encontra o enraizamento da crítica de Backtin ao realismo, ao mesmo tempo que sua dívida para com ele, tanto quanto ser aqui que podemos avaliar a magnitude  da reversão que esse autor institui com seu conceito de Exotopia.
           Na concepção de Backtin o que inicialmente veiculou-se como teoria da arte como expressão por via romântica, a “consciência gnoseológica”, implica o que ele considera negativamente como a necessidade da “transposição teórica” da realização artística – temos já elementos para ver nisso o seu elogio de Goethe. Mas enquanto “consciência científica”, o que servirá como o horizonte da objetividade no Realismo, é o mesmo unidirecionamento do real a que serve. Pela via gnoseológica da reflexão, temos o Romantismo, pela via científica da história social ou evolutiva, temos o Realismo. O que falta nesses dois casos, sendo o que Backtin reclama, é a construção de um conceito de Objetividade propriamente estético, não apenas decalcado do modo de ser das coisas seja como for que se o conceba.
          Tanto que não se pode relacionar diretamente a concepção de arte do Realismo como algo totalmente desvinculado da expressão, o que se vê pelo viés altamente personalista da cena matinal  no quadro "Bom dia, senhor Courbet!" – tudo é expressivo do artista, o estado das roupas, a reverência dos Outros a ele, enquanto o Mesmo, este sendo o referencial exclusivo da realização fenomênico-cênica, ainda que o Mesmo, dialeticamente, só recircule a crua realidade do encontro, do “fato” histórico – concebido como um dado natural – enquanto horizonte do Outro.
         É assim também que em literatura, o apagamento do autor no regime da narração não implica a denegação do Mesmo enquanto realizador-observador da cena. Esse construto, Backtin, que pretende desvincular completamente a teorização literária da noção de expressão, procede pela via da Exterioridade. Basicamente se conceitua a objetividade como exterioridade analisando as relações que se podem constituir entre o autor e o herói.
            Em todo caso, trata-se de uma subjetividade burguesa que seria o correlato da expressão, o que Backtin está criticando. Pois no Realismo, o apagamento do autor serve apenas para melhor deixar ver a perspectiva do sujeito que todo mundo é, a perspectiva comum da correção objetivada. O senso histórico que acompanha a conquista da hegemonia pela burguesia subentende o ser humano como “ser vivendo em sociedade”, muito mais do que “um ser moral em face de Deus”, na expressão de Welleck. É essa homogeneidade do sujeito de ação, assim como da consciência neutra da ciência positivista, que caracteriza a concepção literária do “tipo” histórico-social como o objeto da realização romanesca realista.
                  Assim, tanto Backtin quanto Deleuze vão se opor a “tipo” e pender para o “caráter”, ainda que ambos conceituando-o de modo estratégico, conforme a sua concepção geral não coincidente do problema da arte.
          Uma das dificuldades encontradas por Welleck para utilizar separadamente a categoria de tipo na configuração do estilo Realista se ilustra pela crítica do teorista italiano Luigi Capuana, influenciada por De Sanctis: o tipo é usurário, mas não é Shylock, ciumento sem ser Otelo, quimérico, mas não Hamlet.    
          Welleck salienta que apesar desse didaticismo inevitável da composição, beirando a estereotipia, o tipo provém da importantíssima associação com a observação social objetiva. Supõe-se que não seja o correlato de uma abstração, mas um retrato fiel do que surge e se compõe na sociedade, desde que nesse período o que faria o escândalo numa ambiência iluminista, a doutrina da fabricação social do espírito enunciada por Helvetius, torna-se geralmente aceito, a "natureza" tendo-se tornado Meio, assim como a "carne", inversamente a empréstimo do ideal romanticista, Matéria cientificamente conceituada. O tipo literário no Realismo supõe-se como veículo de crítica ou descrição da sociedade.
       A crítica de Backtin é mais sutil, não compactando apenas a limitação propriamente literária que o procedimento do "tipo" pode fazer deixar entrever, como ressaltou Capuana, ainda que conserve elementos similares. Há aqui como que uma exemplificação que descerra o núcleo do que se designa “transcendência” no cenário do quartel inicial do século XX, mostrando de modo bem claro o que o contrasta ao período anterior de Realismo estrito.
         O “caráter” encena, como o “tipo”, valores. Mas enquanto o tipo expressa a visão humana, social, sobre um valor que já se concretizou e delimitou como um bem – ou um mal – o caráter se estabelece em relação com os valores extremos de uma visão de mundo da qual se deve mostrar ao mesmo tempo a constituição, como eles vêm a ser valores para aqueles personagens que os expressam, ou seja, nessa relação com o caráter é preciso situar-se bem nas próprias fronteiras da existência, ali onde os valores têm sua gênese, ainda que esse lugar precise ser visto de fora e que ele possa tanto estar situado no meio da praça pública como no mais íntimo da residência familiar. Em todo caso ele está dentro da sociedade e da história e é dessa tensão entre um meio e suas fronteiras que se faz a transcendência- sendo “aí”, também, o lugar do Sentido enquanto algo que pertence ao ser humano.
             O tipo representa a posição passiva de uma pessoa coletiva, dependendo, é certo, da caracterização de traços gerais que permanecem numa posição “transcendente” em relação à pessoa que os porta.
            Nesse caso do tipo, o essencial é a análise da exotopia do autor realista na medida em que ela encerra um excedente cognitivo pelo qual somente o autor possui a unidade ético-cognitiva existencial, do alto da qual ele julga a parcialidade do tipo que jamais pode aceder a uma visão completa de si ou do real que habita. Já a "totalidade da obra" que não se concebe em termos do tracejamento de tipos mas da composição de caracteres, é algo que está latente em cada elemento da obra, na concepção de Bakhtin, ímplicando um conceito mais amplo. A análise exotópica vai mostrar que aquilo que somente o autor detém não é a totalidade nela mesma, mas a tensão entre o todo e as partes consideradas isoladamente.
             A crítica do tipo em Backtin, porém, abrange uma consideração que prolonga a exotopia do autor realista na conceituação da objetividade em geral como determinante da obra literária, isto é, da Exterioridade.
         É que o excedente cognitivo que pré-configura a situação do autor realista em relação ao tipo que caracteriza, sendo impedido ao personagem caracterizado, impõe um imperativo de observação que é da mesma natureza que aquele que cercava a interpretação da teorização de Bergson acerca da constituição do ato. É desse ponto de vista, aliás, que Backtin lança uma crítica ao “gesto” e ao “jogo” como únicos correlatos possíveis da tentativa de auto-apreensão do ato, ou seja, algo que é o inverso da “seriedade coercitiva do objetivo” da descrição do ato numa narrativa. Mas nada de equivalente poderia sobrevir no caso do traçado do tipo. Ninguém obteria por si mesmo a sua própria tipicidade. Ainda assim, vemos que se trata de uma mesma objeção, aquela que se volta contra a veleidade do lirismo em considerar-se extensível à constituição romanesca e narrativa.


     III -
             É interessante como o Realismo enquanto aquilo que põe a questão da objetividade, mas também como o que coloca a subjetividade nessas dualidades do tipo e do caráter, de interior e exterior, se relaciona a problemáticas atuais como a posicionada pela teoria da inteligência artificial, articulando-se em torno da questão de se os computadores podem pensar. Nessa polêmica, creio que a posição mais coerente é a que afirma que o computador pode rastrear os caminhos de sua descoberta da resolução de um problema, mas não pode rastrear o interesse pragmático ao encontro de que ou de encontro a que essa resolução instaurará um sentido. O computador não pode reproduzir seu conhecimento numa via sociológica como a prevista por Manheinn como exigência do conhecimento humano. Pensar o pensamento pelo modelo da informática, não é isso mesmo pensável pelo modelo da informática. A resposta à questão de H. Dreyfuss sobre "O que os computadores não podem fazer" seria então ao que me parece bastante evidente,  fazer esta mesma pergunta, meramente por a questão. A que o próprio Dreyfuss respondeu apenas com a imprevisibilidade, mostrando que somente nós podemos tomar decisões numa contingência imprevista relativamente à tarefa prescrita, isto é, criar novos atos possíveis. 
          A questão é se a objetividade que nasce com o Realismo, naquilo em que este se desdobra num Naturalismo, já tematiza de algum modo, e como, a exterioridade pragmática, isso que, somente, permite que se compreenda a proposição: o computador pode repor o que ele fez, não o que ele faz.
           Novalis  pensava o Romantismo e seu próprio empreendimento como superação do Espírito da Terra. Seria o Naturalismo um retorno deste Espírito?
          Sem dúvida, subsiste um paralelo interessante entre a consideração de Max Weber acerca do camponês como sujeito de um “naturalismo” erótico, o epíteto estendendo-se no sentido de “não-sublimado” e “orgânico”, assim como se pode pensá-lo como sujeito de uma “existência simples” e cíclica, e a evolução erótica apontada na Couisine Bette de Balzac pelo que a sexualidade sob o ancién regime era mais sofisticada do que após a Restauração, no apogeu realista-naturalista, quando Madame Marneffe surpreende o velho libertino Hulot por suas convenções de pessoa simples, de mulher ingênua, conforme Wellek.
          Os contextos são exemplares, pois em Weber trata-se de opor erótica e religiosidade, de modo que, como o camponês está no passado da história, e a religiosidade demarca o seu desenvolvimento, ocorre uma não-coincidência na rejeição de ambos da luxúria que cerca a magia ou dos primitivos rituais orgiásticos. O camponês apenas vive naturalmente os ciclos biológicos, o religioso foge do mundo, ativamente por via ascética, ou passivamente por via mística. Mas o convencionalismo de Madame Marneffe é a de uma “irmã de caridade”, portanto, esse realismo-naturalismo não reproduz a organicidade, a fidelidade ao Espírito da Terra que poderíamos considerar comum ao camponês de Weber e a um iluminista como Goethe.
          Aliás, é de se notar que Weber assinala na poesia cortesã tardo-feudal a introdução da figura feminina como sujeito de um ideal espiritual-erótico que na Antigüidade, sua expressão sendo principalmente grega, se reservava aos efebos. Surge aqui a possibilidade histórica do desenvolvimento do tema do amor feminino revelar-se “literário” em gêneros como cartas, poesia e romance, ao mesmo tempo em que a formação da sociedade burguesa caminhou no sentido de substituir ou rivalizar, ao elemento religioso como de realização das aspirações anímicas e subjetivas, o êxito amoroso. Weber ignora assim a atribuição que mais tarde Werner Jaeger faz aos amores femininos de Safo a origem da exaltação passional romanesca que posteriormente se tornará tanto o pendant do platonismo como o referencial do amor heterossexual corrente na história da literatura. 
           Não obstante, poderíamos notar que o aburguesamento, tendo sido paralelo à implementação do capitalismo e da sociedade industrial, não está descartada a possibilidade desse êxito amoroso ter se endereçado no sentido das expectativas da religião cristã, que Weber posiciona como um agente da promoção do capitalismo, preservando-se por exemplo a sua realização pelo símbolo do matrimônio, não do libertinismo.    
         O momento realista-naturalista, como representativo do agenciamento social disciplinar que se impõe na era industrial, como do alavancamento da política econômica dos puritanos que Weber mostra ter vindo sempre se chocando com a da monarquia ao longo da vigência do mercantilismo, está assim configurando essa ascese do ideal amoroso.
          O que se mostra na via de cotejamento dos dois registros, Weber e Wellek, é que o Naturalismo enquanto um estilo de época não significa bem um retorno ao ideal clássico de proximidade ou idealização da Natureza, ainda que o termo, em sentido lato, expresse precisamente isso. Vimos que todo o contexto do Realismo desloca a noção de “natureza” pela de “meio”, sendo a concepção evolucionista a chave nessa transição crucial, apesar de tão recente, na história do pensamento humano.
        A caracterização das relações entre Realismo e Naturalismo, se não está de modo algum completamente estabelecida, ao menos não parece deixar obscuro esse tópico. Não há, pelo Naturalismo, minimização desse deslocamento da Natureza a um meio evolutivo.
         Os manuais costumam tratar essa questão ao seu modo trivial, de modo a suprimir a realidade da subsistente confrontação teórica. Sob a rubrica abrangente de Realismo abrigam as publicações escolares brasileiras, em geral, dois tipos de literatura. A propriamente “realista”, com análise psicológica voltada à vinculação do comportamento individual ao meio social que se torna objeto de crítica, centrada nas classes dominantes, com caráter histórico-documental. E a “naturalista”, centrada nas classes dominadas e nos grupos marginalizados, fortemente evolucionista-determinista onde o papel importante cabe aos instintos.
          Welleck torna claro a polêmica acerca dessa oposição. Inicialmente ela não é contemporânea da produção literária realista, mas obra da cultura literária modernista. Como Zola atribuía aos seus romances um caráter científico e experimental “naturalista”, assim Brunetière o agrupava, em 1883, junto com Flaubert, Daudet, Maupassant e George Eliot, num volume sobre o Roman Naturaliste. Mas a evolução crítica que determinou o desdobramento dos termos é complexa por depender do país considerado.
            Na França e nos Estados Unidos a posição dualista, pelo que há realismo e naturalismo, se firma no século XX, por volta dos anos trinta. Na Inglaterra e na Alemanha não se considerou de modo inteiramente regular a questão. Na Russia, onde a questão enveredou pelos caminhos da política oficial, Georg Lukács consagrou uma relação entre o realismo literário e o dogma ortodoxo marxista em epistemologia, a “teoria do reflexo”, considerando, como já havia feito Stendhal, o romance como um “espelho da realidade”. Assim, Luckács introduziu nesse país a dicotomia, pois o Naturalismo seria algo menos comprometido com essa percepção estrutural da sociedade relacionada como deveria ser a um sentido de futuro, de evolução, que se deve ao Realismo. O Naturalismo, para ele, era algo que se estabelecia na superfície do cotidiano e ligava-se a valores burgueses.
           O quanto essa colocação possa parecer contrastante com a definição trivial apresentada, ocorre o mesmo com relação aos dualismos francês e norte-americano. Na França, surge entre as década de dez e vinte do século passado, ainda de modo algo aproximado a ela. Mas se o Naturalismo é doutrina de Zola, implicando cientificismo, materialismo e determinismo, o Realismo é apenas uma corrente não muito unificada que se pode, contudo, rastrear desde a Antiguidade, de Petrônio a Rabelais, etc. Não é satírico ou cômico, o que é surpreendente, tendo-se a referência ao autor de Gargantua e Pantagruel, mas o critério parece ser a preocupação do autor em apresentar a realidade de grupos sociais explorados, como os camponeses e mendigos da época de Rabelais, costumeiramente focalizados também na literatura francesa do quinhentos. Enquanto corrente apenas relacionada dualmente ao Naturalismo, conforme Welleck, os franceses geralmente concordam que o Realismo é, como uma fase, posterior a este.
            Nos Estados Unidos, Realismo difere de Naturalismo porque somente este se engaja na crítica social. Aquele se interessa sobretudo por conflitos de ideais, ainda que desencadeado pela evolução histórica, sobretudo o conflito que marca a contraposição da fé americana no homem e o credo pessimista-determinista introduzido pela ciência moderna de onde resulta, conforme Walcutt, uma ambiguidade do romance entre exortação fervorosa e formulações literárias “majestáticas” do conceito de inevitabilidade.
         Auerbach e os críticos alemães em geral são um caso à parte, aquele porque sua valorização do Realismo é altamente peculiar, e os outros por uma recusa do enquadramento mínimo do segundo estilo do século XIX, após o Romantismo, como algo contraposto ao subjetivismo deste, como vimos ser o caso de Brinkmann.
          Welleck mesmo tem uma posição bem razoável. Sustentando que o Realismo na definição trivial de representação objetiva da sociedade é como o tipo ideal da sociologia weberiana, algo que não existe, mas a que apenas subsistem aproximações, igualmente afirma que o termo é teoricamente útil. Significa o que se rejeita no sentido estilístico da composição, ou seja, tudo o que se encontra efetivamente nas produções românticas: féerie, lendas, detalhes abstratos decorativos, alegoria, símbolo, estilização, o fantástico, o onírico, o improvável, o casual, a crença, o milagre. E o que se inclui: a explicação científica e racional dos fenômenos num mundo onde tudo se verifica em função da relação necessária de causa e efeito.
          Quanto ao dualismo entre Realismo e Naturalismo, parece conservar para ele um sentido apenas histórico-crítico pelo qual se podem contrapor os panoramas nacionais da Teoria e, no máximo, observar em cada caso o entrelaçamento dos dois processos, aquele pelo qual evoluiu a produção artística do período considerado e aquele pelo qual os fronts críticos do século XX estabeleceram a terminologia que hoje se maneja de um modo ou de outro.
           Deleuze aceita, sem dúvida, o “naturalismo” de Zola numa vinculação à onipresença do Instinto. Mas considera o que seria o seu método romanesco “científico e experimental” de um modo bem relativo, não podendo ser separado da produção estética a que serve. Além disso, o mais importante não é propriamente o instintivo, mas, pelo viés da transformação original do enunciado do Saber em fórmula literária, a criação da figura da Fissura.
         O que é transformado é a noção chave do evolucionismo, a hereditariedade. A noção tem uma vinculação histórica, no sentido de social, não apenas “natural”. É por ela que os instintos entram na determinação das condições individuais, mas como uma noção propriamente evolucionista, é preciso estabelecer as condições de sua determinação pelo meio, nesse caso, o instinto sendo humano, o meio se torna a sociedade. Nisso se está deslocando absolutamente o sentimento como autonomia da interioridade de um sujeito, algo que poderia sugerir a idiossincrasia de uma alma cujos traços se compreendem, mas não se explicam, ou seja, aquilo que fornecia o fundamento do Romantismo.
                  A transformação literária do tema científico da hereditariedade se faz em Zola pelo investimento das potências genéricas do drama e do Epos, na teorização de Deleuze. Zola desdobra o tema em duas linhas: uma pequena, propriamente dramática porque factual, pontuada no cotidiano, a dos instintos; e uma grande, épica, por onde se desenvolve o núcleo não apreensível factualmente, mas envolvendo a causalidade que conecta indivíduo e meio, fato e história, da fissura. A transição entre ambas assinala uma evolução na obra do escritor, como se com o epos ele encontrasse o veículo de realização daquilo que já estava implícito no drama.
           Por esse viés podemos inserir o mais importante como transformação epistêmica ao longo do século XIX. As ciências empíricas tornando-se autônomas, temos uma pluralidade do seu objeto que sendo de experiência, não pode ser conceituada separadamente desta ou abstraindo-a. Mas esse sentido de "experiência" científica é independente daquele em que por  "experiência" entendemos a totalidade em que possa ela ser recolhida como a desse homem que vive, trabalha e se articula pela palavra, aqui e agora.
        Essa pluralidade já se comunica ao objeto pelo modo da impossibilidade de recolhê-lo como correlato de uma ideia, correspondendo, ao invés, como objeto de uma ciência particular,  a um corpus científico que o reúne numa série de processos interdependentes e constitutivos, daí não poderem ser dados como objetos concretos, e sim (quase) transcendentais (Foucault), também porque não são separáveis das técnicas de inquérito e de mostragem que os reúnem na coerência de um horizonte de pesquisa, como o objeto de um Saber.
         Somente nessas condições se compreende a fissura, como o modo pelo qual se instaura o corte entre o empírico e o transcendental. Poderíamos conjecturar da angústia dessa experiência que é a da modernidade. É aquela que pode ser aquilatada quando recordamos a tremenda implicação de uma transposição como a de Natureza a Meio natural, suposto determinista. É a unidade do mundo, ainda que bipartida na dupla atribuição de matéria e espírito, pensamento e extensão, que se desfez, primeiro, para logo depois romper-se a unidade do Sujeito, antes correlato daquele mundo. A subjetividade se vê maquinada materialmente mas não pode mais transpor na clareza e distinção da Ideia a independência do espírito, pois este, assim como a linguagem na articulação de suas estruturas, se tornou estruturalmente determinado pela maquinação determinante das condições do meio, se tornou um certo modo de combinar e pesar instintos.
            É assim que a sexualidade se torna, como Welleck mostrou, um tema literário somente com o Realismo-Naturalismo. É que agora já não se pode desdobrá-lo como um tema libertino, pelo procedimento de mascarar a sua índole em desinteressado Amor ou espirituoso Prazer, isto é, algo superior ao ponto de vista da carne. Permite-se somente desde esse entorno realista-naturalista tratar o sexo desvinculado da temática do amor, por ser um dos mais básicos dos instintos. Vê-se assim o quanto essa tematização do sexo não está em contradição com o puritanismo dos costumes que se reintroduz por essa época.
          A fissura é por onde brota a determinação do indivíduo pelo meio, lembrando que falar aqui de interdependência não estaria muito correto, já que desconhece-se ainda a implicação da genética na teoria da evolução. A hereditariedade é uma via de mão única, o determinismo do meio não pode ainda ser relativizado como o será no século XX.
          O grande símbolo épico na obra de Zola, o Trem como o grande Fantasma da história, conforme Deleuze, demarca dois fatores importantes na sua construção. Inicialmente, temos o símbolo da história como a auto-constituição da obra em si mesma. É nele que se dá a ver o fator de transformação original que impede considerar o romance como uma mera extensão da ciência.
         É o que Deleuze sublinha enfaticamente ao notar que não se pode reduzir a fissura do romance de Zola aos procedimentos naturalistas que lhe são contemporâneos e que se dirigem no sentido de marcar a mesma impossibilidade de prosseguir na via do sentimento e da reconstituição da vida interior do personagem. A fissura não se impõe como um correlato fisiológico, ainda que o lugar ocupado no século XX pela psicanálise o estivesse sendo, naquele momento, pela fisiologia. A fissura se destina a cobrir um campo temático mais vasto do que apenas a descrição da perversão, da inadequação íntima ou da brutalidade de um ser que se tornou menos do que humano.
          A subjetividade que não mais obtém unidade qualquer de sentido senão da parcialidade de sua própria experiência, só haure da própria finitude esse sentido, mas não como algo que ela constrói interiormente assim como interpretaria o romantismo. A fissura constituindo-se desde a hereditariedade implica a relação da subjetividade com um instinto de aniquilação - como mais tarde conceituou Freud - cujo caráter estruturante dos atos não é recuperável pelo próprio sujeito, somente pelo observador dotado desse a mais da cognição, o conhecimento do determinismo do meio na sua correlação aos instintos. Esse ponto de vista do analista ou do autor, não é portanto apenas "externo". Ele é científico, mas não restrito ao "cientista", por aí o seu situamento podendo estender-se ao literário. Mas com isso, problematiza-se o estatuto do "artista", algo que se torna mais complexo à medida que do Realismo-Naturalismo ocorre o trânsito à grande provocação social das Vanguardas.


         IV -


                  Entre Realismo e Vanguarda, a Teoria da Literatura apresenta esse particular curioso: ao mesmo tempo que o resultado material da obra é tão manifestamente irredutível nesses dois cenários, a conceituação do que os tornaria identificáveis enquanto processos estéticos autônomos e oponíveis não se revela nada fácil de obter. 

                 Até aquilo que mais distingue a Vanguarda, pelo que ela teria um caráter de intervenção social que o determinismo do meio no Realismo tornaria impensável, foi há algumas décadas jocosamente tornado ambíguo por Pierre Daix ("Crítica nova e arte moderna"). O capítulo XIV, que se intitula "Do realismo. (pulem este capítulo os que tenham opiniões atrasadas)", começa subvertendo essa reserva de escândalo, notando sobre o Realismo que "A palavra é tão maldada pela imprensa, tornou-se de tal modo sinônimo de não-arte que atualmente os pintores que procuram o escândalo se enfeitam com o título de novos realistas"
               Poderíamos rastrear exemplos dessa subversão praticamente para cada item que alguma vez se apresentou como a fórmula definitiva da Vanguarda. O problema é que a questão atinge o estatuto da arte: pode-se falar no Modernismo como algo em total ruptura com a história da arte? Nesse caso, ele seria arte?
                 Que não há de fato essa ruptura, vários elementos permitem sustentar. O abstracionismo, por exemplo, surge desde Kandinsky muito relacionado aos trabalhos em história da arte que alargaram o horizonte da produção, desde a tradição ocidental do figurativismo aos estilos geométricos dos povos bárbaros germânicos. Pouco mais tarde, o primitivismo como informação da produção europeia pela arte dos aborígines da África, do Pacífico e da América-Latina, se torna um dos ramos estabilizados do modernismo.
               Ocorre que essa produção pode não estar rompendo com o compromisso realista de subverter a representação estética - em vez de uma convenção "artística", a pesquisa das leis de qualquer apresentação do Real. Apenas, enquanto o Realismo pesquisou essas leis a partir de um parâmetro universal que tomou por objetividade, mas que era apenas culturalmente condicionado, a Vanguarda estendeu a pesquisa à variação cultural. Isso é o que se traduz habitualmente na proposta de definição do contraste entre Realismo e Modernismo, tendo por parâmetro a relação de imitação do modelo.
          Conforme Daix, o Realismo seria "uma arte em que o modelo é o que se reproduz por imitação", enquanto o Modernismo seria uma arte em que "o modelo é construção de um equivalente dinâmico do real". Assim, "na primeira arte, o modelo é passivo e anterior à arte. Na segunda o modelo é ativo, fruto da arte." Ele relembra  a conhecida estória de Courbet, ilustrando a sua atenção ao detalhe exato. Ao pintar um feixe de lenha, muito distante para ser bem focalizado, tudo o que obteve como aparência ótica do feixe na paisagem era uma mancha de cor. Então ele pediu a um dos companheiros que fosse identificar o objeto figurado, mas não descritível.  Daix deduz assim que isso mostra como "a visão do pintor está condicionada por sua filosofia, mais geralmente pela  forma de organização do real de sua cultura". 
            Mas como já assinalei, isso de fato poderia apenas repor o problema do conceito de arte no Realismo e na Vanguarda. Para Daix, não há  qualquer acréscimo de técnica entre Courbet e os impressionistas, inversamente, poderia ser que ele soubesse mais sobre a pintura do que os mais moços iniciantes das vanguardas. E, sim, que essa estória assinala "a mudança na concepção da realidade". Ele constroi a oposição exemplar de Courbet e Manet, de modo que se há concepções opostas acerca da realidade, o que expressa a oposição é a oposição quanto ao conhecimento passivo e prático. Mas como isso esclareceria que houve alguma mudança na própria decisão de manter a arte num compromisso inquebrantável com a realidade?
           A meu ver, o determinismo do meio no Realismo apenas se desloca a um determinismo de estrutura e função no cenário da Vanguarda, e a oposição de Subirats entre primitivismo e racionalidade geométrica, em termos de movimentos opostos dentro do Modernismo, na verdade se mostra muito relativizável.
           É interessante notar que do ponto de vista histórico, há efetivamente uma mudança profunda no que tange à concepção científica afirmando-se desde a transição ao século XX e seus inícios. O mecanicismo do século anterior se desfaz em proveito do que se designou uma perspectiva orgânica. Isso é onipresente no funcionalismo dessa época, onde o fenômeno é considerado uma estrutura, ao modo de um organismo, formada pelas suas funções. Mas o dramático é a transformação em curso na psicologia.
             O associacionismo que orientava a psicologia realista, deixa de ser consensual desde a polêmica no interior da escola introspeccionista, mas de fato a ruptura decisiva costuma ser designada pelo estudo de Wertheimer, publicado em 1912, sobre o movimento estroboscópico.
            Por instrospecção costuma-se referenciar os estudos em psicologia anteriores ao situamento em laboratório, quando o teórico generaliza dados a partir de si mesmo, de sua observação interior. A escola introspeccionista, no entanto, já marca o limiar da pesquisa de laboratório que muitos consideram o limiar da "psicologia científica". Nessa escola, a proposta era que o pesquisador observasse outros observando-se a si mesmos enquanto resolviam problemas ou pensavam conceitualmente, os quais iriam expressar em voz alta os processos em curso. O que ocorre ao sujeito viria a ser veiculado numa base de perene confrontação, nas mesmas condições, com a experiência dos outros sujeitos.
          Mas essa proposta foi feita a princípio, por Wundt em Leipzig,  apenas para verificar variáveis fisiológicas,  as recepções sensoriais. Pensava-se que dois observadores poderiam descrever o mesmo estímulo, usando uma terminologia sensorial semelhante. A proposta encaminhava-se numa perspectiva estrutural de "identificar a estrutura da mente, através da identificação dos aspectos fundamentais da experiência mental", conforme Romeu Gomes.
            Logo pesquisadores em Wurzburg decidem estender sua aplicação experimental ao domínio do pensamento, especialmente Külpe, Karl Büller e Selz, a quem N. Ach, A. Messer, H.J.Watt e K. Marbe se unem. Ocorreu então que o requisito associacionista pelo que entre a recepção sensorial e a formação das ideias nós formamos imagens como representações ou conteúdos mentais, foi refutado. Os sujeitos, ao resolver problemas e relatar em voz alta seus processos mentais, não registravam essa formação. Isso reforçou decisivamente a perspectiva de Brentano, recusando o ponto de vista conteudístico da mente. Segundo ele,  a psicologia não mais deveria se preocupar com representações, mas com o ato de representar, nem com a imagens, mas com o ato de imaginar, menos ainda com o juízo, mas com o ato de emiti-lo ou enunciá-lo.
             A polêmica, contudo, não se extinguiu apenas pelos resultados de Wurzburg, ao menos quanto à utilidade da observação controlada da introspecção por outros. Quanto ao associacionismo conteudístico, efetivamente sua refutação se considerou formalmente demonstrada, ainda que isso não tenha sido o escopo dos pesquisadores em Wurzburg, que pelo contrário haviam iniciado as pesquisas pensando poderem com elas confirmarem o esquema de sensação, imagem, ideia. Wundt argumentou contra isso que as pesquisas não tinham o rigor necessário, ou que o nível do pensamento não podia ser pesquisado desse modo. Em todo caso, o decisivo na recusa do associacionismo veio com a  publicação do "Experimentelle Studien", de 
Wertheimer, onde o tema é investigado, marcando a emergência da Escola de Berlim ou gestaltista.     
           Mostrou-se nesse estudo que o movimento estroboscópico não pode ser uma soma ou síntese de sensações, sendo na verdade uma percepção original.
            O experimento de Wertheimer consistiu na projeção sucessiva, em dois pontos de uma tela, da imagem de um mesmo objeto, por exemplo, um círculo luminoso. Constatou-se que dependendo de certas colocações de duração e distância das projeções, vê-se um círculo que se move da posição inicial à posição seguinte. Esse movimento aparente não se distingue do movimento real na percepção. 
             Observou-se nesse resultado não somente a refutação da tese associacionista, pelo que o que se vê teria que parecer uma reminiscência dos movimentos reais, mas também da assim designada tese da constância que se relaciona à concepção de uma veiculação determinista dos fenômenos psicológicos aos mecanismos fisiológicos. A tese afirmava uma relação constante entre a excitação local e a sensação. Mas essa percepção do movimento da projeção não se explica pelas excitações retinianas localizadas. A simples adição de circuitos cinestésicos, de movimentos dos olhos, aos circuitos de origem retiniana, não são suficientes aqui.
            O estudo das "ilusões" tornou-se incorporado, desde aí, à psicologia. As "ilusões" são imagens vistas de forma que não correspondem ao que está realmente na figura, o que se deve às leis de recepção da forma que não são determinadas apenas pela fisiologia humana, mas por sua conjugação às leis figurais atinentes à composição física das imagens (linhas, contraste forma-fundo, disposição espacial, etc.).  Uma das ilusões mais famosas é aquela imagem cuja recepção pode ser tanto de uma mulher muito velha quanto de uma sedutora jovem, conforme a perspectiva do observador.
         A apressada supressão do empirismo como irrelevante à assimilação dos resultados refutadores do associacionismo, ao qual estivera ligado no século XIX como exemplarmente na psicologia de Stuart Mill, na verdade não se mostra historicamente comprobatória. Muito militou para assim fazer crer o gestaltismo, tanto por seu combate à perspectiva aditiva da percepção, como soma de elementos inversamente à apreensão do todo, como por seu sucesso epocal. Porém o empirismo estava assimilando a psicologia nova no terreno da filosofia, como demonstra a reflexão de G. E. Moore sobre a questão kantiana da prova do mundo existente. 
                  No prefácio à segunda edição da Crítica da Razão Pura, Kant observou que essa questão considerada insolúvel ao longo da história da filosofia, poderia ser resolvida pela inclusão do tempo no pensamento, pois se a percepção das coisas é temporalizada conforme o antes e o depois, então elas existem nessa temporalidade como algo independente de nós. Um argumento coerente com o pressuposto kantiano de que mesmo sendo incognoscível, a coisa em si deve existir de modo coerente com a nossa experiência, e em geral existe por si. 
             Moore objetou a Kant por meio de um exame minucioso da linguagem que estrutura a questão, que o significado de mundo exterior a nós se torna insuficiente ao modo como Kant parece compreendê-lo, uma vez que os componentes do mundo extrapolam a natureza de simples coisas para abarcar objetos perceptivos exatamente como os que a psicologia descobria então. Ou seja, como as ilusões ou projeções independentes do dado, realidades percebidas não redutíveis a coisas a exemplo 
 das assim designadas imagens eidéticas, que vemos como réplica de algo que observamos fixamente, quando movemos os olhos da coisa até uma parede, onde então vemos surgir a réplica como que sombreada. 
          Moore considerou que se qualquer percebido pudesse ser numericamente duplicado, como termos duas mãos que podem tocar duas localizações diferentes de uma superfície, por exemplo, então essa seria uma prova suficiente do mundo existente, pois interno a nós seria apenas a ideia unitária do percebido. Aqui vemos que a natureza da percepção ilusória ou projetada descoberta na psicologia é importante a Moore por tê-la considerado ontologicamente objetiva, isto é,  sempre repetível, duplicável, como a mesma experiência. E Moore, considerando que se essa prova da realidade externa não fosse aceita por alguns filósofos,  isso não importava para ele, devido à sua inabalável convicção da existência do correlato perceptivo assim que a percepção tem lugar. Ao que parece Moore transfere do tempo ao espaço a prova do mundo existente, mas considerando a existência por uma perspectiva ampliada, de modo que conforme a premissa empirista, nossos conceitos são derivados do modo como a experiência é num mundo exterior a nós, que porém só podemos entender pelo como como a experiência se mostra. 
             A superação do associacionismo estava em todo caso irmanada àquele trânsito da pesquisa científica a uma concepção mais orgânica, por onde nessa época o modelo da ciência do cérebro mudou do mecanicismo sensório onde se pesquisavam as excitações localizadas à Helmholtz, para o parâmetro do sistema nervoso central à Sherrington. E com a genética, o determinismo racial, assim como o da hereditariedade interpretada ao modo positivista do darwinismo anterior a Mendel, se desfaz, enquanto paralelamente essa ruptura cultural estava se afirmando devido à compreensão cedida pelas pesquisas de campo na etnologia, onde o aborígine se contactava como  membro de sociedades  organizadas.        
          A repercussão dessas rupturas na arte não poderia deixar de ser tematizada. Ora na conexão da pesquisa social de campo com o primitivismo, ora em vertentes aparentemente antagônicas, pois se na Bauhaus tratava-se de circunscrever a realização da forma  à função, é a atividade do agente que desloca o determinismo do meio, a função correspondendo à ação dos moradores a que se destina o projeto arquitetônico.
           Esse requisito da atividade é que devemos, porém, entender na sua circunscrição a esse entorno histórico que tem na psicologia gestaltista um grande destaque. Pois, não se trata da atividade "romântica" do espírito que cria seus símbolos e por esse meio concede sentido à existência ela mesma  pensável como a hiância por um lado não-predeterminada quanto ao percurso do sujeito, por outro lado sendo o campo descritível pelas ciências. Trata-se, na gestalt e nesse parâmetro funcionalista em geral, de uma atividade que se conjuga formalmente a um campo restrito da exterioridade. Há assim ao mesmo tempo atividade e lei formal.  As leis formais da percepção não estão dentro (sujeito) nem fora (objeto), mas "entre" ambos, como também na fenomenologia.
             Assim, quando mais tarde surgem propostas de vanguarda bem contrastantes com o ascetismo da Bauhaus, como a Op Art, o princípio é o mesmo. Vasarely, um dos expoentes mais conhecidos da Op art, explora justamente a "ilusão". "Corrente", de Bridget Riley, cria a ilusão do movimento através da seriação contínua de linhas ondulantes, e  em "Triond" de Vasarely,  a interação de cores e formas fixas aparentemente deslizantes produzem  a impressão ótica de três volumes móveis alternando-se em suas posições. A interação da recepção com a obra é o que está sendo enfatizado nessa tendência, mas por interação o que se entende não é a espontaneidade participativa como em propostas mais atuais, e sim a conjugação formal-perspectivística que implica a variação na recepção.
            O importante aqui seria notar que quando o estruturalismo e seus desdobramentos assim designados pós-estruturais examinam essa produção de vanguarda, geralmente tendem a considerá-la coextensiva aos seus próprios parâmetros, mas na verdade pode não ser esse o caso, e inversamente, teríamos que contar com alguma linha de fronteira na altura do cenário pop, em que outros princípios não funcionalistas e mais sistemáticos estariam atuantes, para poder aplicar uma perspectiva estrutural não-anacrônica em termos do que era conscientemente tematizado na produção estética.
            Pois, como se sabe, o estruturalismo consolidando-se desde a década de cinquenta do século XX, é uma ruptura em relação à psicologia gestaltista e à fenomenologia.



      5 - A Estrutura Entre o Pop e o "Pós"


    

        1 )
               Assim como entre o Realismo e as Vanguardas a noção de "realidade" se transportou como uma senha ambígua, entre o funcionalismo e o estruturalismo o termo que desempenhou esse papel foi a "estrutura". Nessa oportunidade, examinaremos o que muda na consistência teórica a partir da década de cinquenta do século XX, tendo essa transição terminológica por fulcro.
                  Conforme a expressão de Pena (Introdução à história da psicologia contemporânea), a percepção pôde atuar no âmbito funcionalista e gestaltista como um parâmetro transversal, modelo dos demais "processos operacionais"  como o pensamento inteligente, a constituição da subjetividade, o nível dos fenômenos físicos e sociais. A lei da percepção é a lei da presença, pura e simplesmente qualquer coisa presente só pode aí  estar para uma recepção consciente devido às mesmas leis.
                Tudo o que é inteligível, só o é porque resulta como configuração ou gestalt que se traduz por forma ou estrutura, abrangendo constitutivamente os seus elementos. Nessa interpretação assim chamada estrutural-funcionalista, a estrutura significa um campo de força que subsume todo e qualquer elemento no seu interior. A imagem da linguagem na metade inicial do século XX, mesmo sendo já influenciada por Saussure, assim entendeu o seu caráter estrutural, cada língua vindo a ser um campo coercivo do sentido, uma visão de mundo. Estrutura significava aí "totalidade" - o que vimos bem enfatizado por exemplo em Bakhtin..
                  M. Ponty situou essa transversalidade funcional da percepção, na abrangência do empirismo clássico: a percepção como assimilação de dados de que decorre todo o processo intelectual de modo a dispensar-se a subjetividade que constitui o sentido e o valor humanos, não apenas a presença, do fenômeno. Mas de fato, não se trata de recepção de dados, e sim da integração do campo, totalidade regida por certas leis, que atravessa o sujeito e o objeto, a figura e a visão.
                 Não teria sentido interpretar isso como na concepção iluminista clássica, não se tratando de dados sensíveis na exterioridade de um sujeito dado como espírito, do mesmo modo que Kant supondo-se uma subjetividade como o todo absoluto de suas leis. O próprio Ponty utilizou vários elementos dessa noção de totalidade, por outro lado os gestaltistas tendo se aproximado da fenomenologia. Aqui a totalidade ou campo se opõe à noção de adição de elementos. Como assinalamos, o campo não é aditivo, não resulta na soma dos elementos, inversamente, é a disposição dos elementos como tais que está predeterminada pelo campo. Leis perceptivas são leis do campo, assim quando vemos duas linhas lado a lado traçadas num papel, julgamos estar vendo um par, inversamente ao que julgaríamos se as linhas estivessem dispostas aleatoriamente no papel,  porém nas linhas mesmas não havendo diferença se elas estão lado a lado ou aleatoriamente tracejadas. Percepções de figuras são regidas por leis de fundo e forma, assim percepções podem ser ambíguas como as que os gestaltistas criaram, pois dependendo de como a vista posiciona o todo, destacando o fundo ou a forma, a figura resulta perceptível de um modo ou de outro. 
                 Em oposição a esse conceito de "estrutura" como 'totalidade" ou "forma" (gestalt),  o estruturalismo a pensa na especificidade de um processo que se torna descritível como um sistema parcial. A sociedade ou o homem, ou ainda o biológico, não articulam nem uma soma nem um campo dado de elementos constituintes, o que se conceituam são estruturas parciais que se compõem atravessando domínios. Uma estrutura é a combinatória dos seus elementos, porém os elementos só se combinam por sua posição na estrutura, neles mesmos não tendo função definida, sendo independentes. 
                  Essas estruturas parciais podem ser exemplificadas com as auto-regulações de Piaget em inúmeros fenômenos no interior da biologia ou na produção de sentido lingüístico, a língua no seu estatuto sincrônico, isto é, na sua atualidade; nas trocas simbólicas; nos sistemas de parentesco, nos níveis do modo de produção econômico, todos esses efeitos que se manifestam por meios de estruturas combinadas, de modo que esses meios não são prerrogativas de nenhum grande domínio considerado como biológico, linguístico, social. E dos meios ao que eles manifestam, esses sistemas parciais, o que se solveu foram precisamente tais grandes domínios considerados no funcionalismo como realidades em si. Os meios são apenas efeitos estruturais, não totalidades de funções, pois as funções resultam da combinatória livre ao invés de previamente a ela. 
              Em vez de "a sociedade", temos agora os sistemas parciais que no interior das coletividades se manifestam, como os discursos míticos, as relações de parentesco e mais geralmente quaisquer das suas instituições simbólicas. Em vez de "a natureza", verificam-se fatos dotados não apenas de uma capacidade de ser quantificados, mas processos que já a cibernética, por exemplo, poderia conceituar na sua coextensividade qualitativa aos sistemas biológicos ou psicológicos. Mas, no interior do estruturalismo o que há em comum a todos esses meios ou sistemas é o que garante o caráter transversal da noção de estrutura, o fato de sua composição de elementos opostos entre si e absolutamente atuais no sentido da sincronia, que se estendem em séries produzindo um efeito de sentido.
               O êxito do estruturalismo está na superação do reducionismo funcional-fenomenológico realmente demasiado simplista, porque as totalidades ou campos só se mantinham desde que na prática se as deduzia ingenuamente: a linguagem reduzida a comunicação, a sociedade a coletividade, etc. Além disso, a meu ver não é possível separar o bem e o mal políticos dessa vertente. Os totalitarismos e os autoritarismos de toda ordem operam exatamente na base dessa redução.
              Por outro lado, poderíamos objetar ao estruturalismo o mesmo que se fez para a análise fatorial aplicada à psicologia da inteligência: você só obtém com a análise fatorial aquilo que você mesmo colocou lá. Mas a princípio o estruturalismo não foi uma proliferação de “discursos” como “modelizações” à Foucault e Deleuze, e sim o tratamento de fenômenos concretos estudados em disciplinas, ora determinados como linguagens, como os sistemas de parentesco em Levi-Strauss, dispensando-se totalidades abstratas.
            A essa altura, o próprio funcionalismo metodológico já estava num impasse porque o preço da redução do campo a um critério único, viabilizada por tratá-lo como meio de sentido ou totalidade, tornava-se demasiado em troca da oferta que só era atrativa enquanto a unidade de definição permitia desdobrar uma natureza universal, por exemplo, da Sociedade tal que todas as sociedades históricas seriam naturalmente isso ou do contrário se trataria de uma aberração. Mas quando se constata que numa amostragem ampla de sociedades descritas conforme a correlação de suas funções, não há qualquer padrão natural para as combinatórias existentes, o funcionalismo recua para nada mais que uma opção pela ausência de método, descrição pura – no que já também não acreditamos poder ser algo “desinteressado”.
             O essencial aqui é notar que esse recuo implica a derrocada da metodologia funcional como de fato um instrumento útil à esquerda. Inversamente, os totalitarismos que se baseiam apenas num senso-comum indemonstrado da natureza da comunidade - nessa definição, como algo que subsume os indivíduos conforme disposições de função  – formam o palco do retorno da concepção de campo desde os anos oitenta, que se manifestou na ambientação passadista “anos trinta” (auge do funcionalismo) seja nos projetos cinematográficos estudados por Jameson como a ambientação de todo setting, ou nos projetos econômico-mundiais da globalização a partir dos nineties, estudados por Subirats.
           Tanto Jameson quanto Subirats localizam assim o fenômeno extremamente indesejável da atual (“pós-moderna”) fascistização da sociedade e de setores institucionalizados da arte, contrariamente a opiniões superficiais de alguma estabilização do liberalismo após a guerra fria.
          O cenário brasileiro no terceiro milênio tem apresentado a fascistização da juventude de classe média, que se tornou o sujeito ideal praticante do segregacionismo e da violência institucionalizada contra o segregado, desde a linguagem das comunicações de massa. Mas também de um tratamento político das minorias como totalidades funcionais naturais, ou seja, de modo demagógico que se presta ao oportunismo. 
          Retornando à questão do estruturalismo, com o tratamento linguístico do fenômeno localizado Strauss resolveu um dos problemas espinhosos da antropologia social, aquele dos sistemas de parentesco nas sociedades aborígines. As combinatórias são várias, mas ocorre que os elementos, os graus de parentesco formando sistemas de obrigações mútuas, são constantes. Ele construiu assim um modelo que correlaciona os títulos (pai, mãe, tio, tia, filho, filha, sobrinho, sobrinha) com a variação das obrigações de modo que certa combinação determina a exclusão de outras. Por exemplo, se a obrigação sócio-identitária é com o pai ou com o tio, temos certa situação esperável da mãe e dos outros elementos.
         Esse exemplo mostra que no estruturalismo as combinatórias não são mais de funções descritíveis. São sistemas inconscientes ou prévios a toda função conscientemente investida para descrição por outros ou por integração do sujeito, o que interessa ao pesquisador reconstituir. A realidade operante não se dá imediatamente, é efeito da estrutura inconsciente. Estrutura agora se traduz por “linguagem” (sistema de signos).
         Quanto à psicologia, a expressão estruturalista por excelência foi constituída na Escola de Genebra, organizada por Piaget. Sua rejeição do ponto de vista da Gestalt acerca da preminência da percepção como modelo da presença para todos os fenômenos, incluindo o pensamento e a inteligência, não se coloca como a de Ponty, num ponto de vista anterior ao que está sendo criticado de modo a conservar a subjetividade numa focalização "metafísica", mas, inversamente, já integra noções desse momento posterior, estruturalista. Assim, a noção transversal mais adequada conforme Piaget seria a Ação, não a percepção, já que a presença também não se coloca como instantaneidade auto-constituída, mas depende dos esquemas liberados pelas possibilidades ativas dos organismos.
           Ora, a ação não faz apelo a uma subjetividade pensada como todo absoluto, como se vê, pois mesmo os organismos são dependentes dos seus limiares de auto-regulação. Inversamente, ela se constrói como um efeito de estruturas inconscientes constituídas na junção de exterior e interior, mas na experiência. Ultrapassa-se aqui o dilema do inato e do adquirido. As estruturas cognitivas podem ser possibilidades inatas à mente humana, mas elas só vão ser atuantes se forem ativadas pela qualidade da experiência de mundo. Sem certos estímulos, a performance do desenvolvimento não será igual à que ocorre quando os estímulos esperados ao longo da infância estão presentes.
           Essa noção transversal da ação será muito utilizada, inclusive quando se tratar, como em Ladriére, de superar a oposição Piaget/Ponty nomeada como Logos/Subjetividade para lançar-se como processualidade que atravessa todos os domínios, da antropologia à cosmologia. Esses encaminhamentos podem ser discutíveis, a meu ver, como tentativas de totalizar um horizonte epistêmico cuja característica histórica desde os anos cinquenta do século XX tem sido, inversamente, a tendência à descentralização. Mas o estruturalismo mesmo se auto-interpretou como uma unidade metódica possibilitada pela cibernética, com o sistema ou linguagem tornando-se o parâmetro comum a todas as ciências.
            É nesse ponto que me parece oportuno inserir o problema da arte desde o cenário pop, isto é, desde os sixties. Se nessa época a cena teórica está se pluralizando com o estruturalismo que se expressa recusando o que vinha proeminente da metade anterior do século como o estrutural-funcionalismo paralelo à existencial-fenomenologia, o que ocorre na arte se mostrou muito mal tematizável pelos existencialistas com suas categorias hiperordenadas, isto é, prévias ao que os produtores mesmos pensavam ou faziam na sua total reversão de um senso-comum disposto pelo condicionamento ocidental da “consciência”, num momento de intenso descentramento cultural.
             O estruturalismo tomou, pois, a frente nesse mister de dialogar com a arte, mas o fez como se uma linguagem comum houvesse entre as vanguardas desde o início do século, o hermetismo a que elas se consagraram depois, e esse novo cenário de uma arte extremamente informada pelos signos mais populares e massificados transitando na sociedade que já alguns poderiam considerar pós-industrial, isto é, definida pelos serviços e pela consumação de informação, não pela “produção” de coisas.
           Além disso, o estruturalismo também se auto-interpretou, em termos da experiência de alguns dos seus expoentes, como integrando essa corrente “pop” na teoria, recusando, por exemplo, o próprio rótulo “estruturalista” como algum aval científico-autoritário, ainda que sem deixar de manter aquela unidade de método, não obstante apenas para lograr resultados autônomos em cada caso. Notadamente após a voga desses expoentes máximos, Althusser, Lacan, Strauss, a recusa da etiquetagem veio de par com esse investimento estetizante anti-institucional, como em Foucault, Deleuze, Guattari, Derrida. Aqui, no entanto, também a unidade de método se compromete a partir de Derrida.
              Ora, nós só poderíamos constatar uma ruptura teórica que efetivamente acompanhasse a radicalidade dos movimentos pop, se em algum momento houvesse uma quebra no “discurso” teórico tal que o dilema entre convenção e natureza não mais fosse neutralizado por um tratamento da convenção de modo que, uma vez demonstrando-se que se ela não é o ideal, ao menos é extremamente útil e o seu contrário não é sustentável senão como idealismo, passa-se a considerar as convenções alternativas como “meras” alternativas.
              Isso, essa quebra, seria o mais próximo do que me parece ter objetivado Derrida. A consequência não é a “anarquia” no sentido vulgar do termo. Mas a reversão de todo paradigma ocidental da consciência que persiste nas modelizações do inconsciente como “discurso”. A recusa, portanto, de que exista alguma forma geral da oposição – no limite, Aristóteles e a lógica identitária com o princípio de não-contradição – a qual iria reger a economia inconsciente como sistema diferencial da linguagem.
              Isso também  não é o ocultar-desocultar do sentido heideggeriano hermenêutico, por outro lado. Nenhuma forma de oposição se sustenta além do texto/escritura em que ela é produzida, mas o texto não é ele mesmo um sistema de valores diferenciais subjacente como linguagem de modo tal que a forma geral da oposição como "a"  ou  "não-a" subsista como dado fundamental (a priori) da inteligibilidade.
              Aqui nesse domínio da letra/escritura, as formas linguísticas não são todas redutíveis ao alfabeto linear ocidental, portanto o inconsciente não pode ser ele mesmo uma natureza destinada a essa dicotomia. Ele é o nível em que determinadas linguagens foram constituídas como atuáveis, exatamente como programas, mas restando que esses programas colocam em termos de inconsciente a sua alteridade, o signo na inteligência da espécie não pode ser reduzido a sinal como no funcionamento de um programa de computador, nem dicotomizando significante e significado. O programa mais simples – em que a mão pode utilizar a pedra como instrumento – interpela a hiância da mão e da pedra desatreladas de totalidades tais como o corpo e o meio, mas investindo o movimento físico da mão, coloca sua alteridade relacional em relação à pedra e ao meio. Ao que me parece, em Derrida o automatismo não é a realidade da libido como é na esquizoanálise de Guattari-Deleuze.
            Há ruptura com Saussure e com Freud em Derrida. Trata-se de romper com o "sistema fechado" que se conceitua como um dentro por oposição absoluta ao seu fora. Quanto ao caráter não-heideggeriano da Gramatologia, o texto não pode exconjurar o outro sentido que ele ocultaria. O que ele não pode exconjurar, portanto, é o outro do sentido, que não é o não-sentido, mas o que ele expressa como alteridade de si, por exemplo, a razão cartesiana não oculta, não poderia por num fora de si, a loucura como desrazão. Se fosse assim ela construiria sua manifestação da expressão mesma daquilo que oculta, o que é absurdo.
           A razão cartesiana expressa a loucura como desrazão, e é assim que se constitui como essa razão, esse conceito cartesiano de razão. Essa linguagem não sustenta outra linguagem. Não há, por outro lado, uma totalidade da linguagem na qual esta forma de expressão estaria ocultando outro modo de expressar a loucura, como uma estrutura das estruturas. Pois, de fato, essa totalidade da linguagem subentenderia outra, a totalidade da loucura tal que existiria fora das linguagens como um significado transcendental a todas elas.           
             Há uma reconstituível disseminação histórica da “loucura” na linguagem, intertexto por onde linguagens da loucura são construídas com elementos recorrentes, mas posicionados em modos relacionais variáveis – não apenas posicionadas em dicotomias opositivas variáveis.
              Se fosse objetável que há as produções textuais da loucura, e as práticas que essas produções interceptam, seria o caso de se indagar, mas as práticas correspondem a quê? Nós só lidamos com uma complexidade histórica que Derrida não procurou sistematizar como Foucault, e sim somente interpelar desde as linguagens ou escrituras historicamente existentes, por onde constantes observáveis como a “metafísica ocidental”.
             Assim, se o exemplo fosse “humanidade” em vez de “loucura”, nós já estaríamos num período onde a palavra recorrente não diz respeito a uma problemática do intelecto onde racionalismo se confronta a empirismo, mas num momento posterior onde o que está em jogo é compreender a cultura que já não pode se opor dicotomicamente a natureza.
              Momento rousseauísta, onde a dicotomia de natureza (o selvagem) e cultura (o civilizado) subsiste cada vez menos de fato, mas ainda não é ultrapassada de direito porque não há ainda a fixação do transformismo evolucionista. Então nós poderíamos, nesse exemplo, notar como as linguagens não repõem alternativas de visões de mundo. Rousseau, efetivamente, não tem uma. Não pode tê-la, por mais que a projete, porque em cada texto desse projeto, a oposição construída se constrói como demonstração de si mesma, essa demonstração sendo inexequível. Rousseau efetivamente, testemunha a sua ilusão de unidade de visão, mas só fala a profusão de suas alternativas contrastantes. Metafísica ocidental, em Descartes e Rousseau, com resultados bem irredutíveis, mas correspondendo ao mesmo projeto inexequível de uma inteligibilidade auto-demonstrável da/como a exclusão da alteridade, um todo-discernível.
              É interessante quanto a isso, a controvérsia de Trotski e Breton, o primeiro questionando o recurso surrealista ao vocabulário psicanalítico uma vez que os psicanalistas estariam querendo assegurar o domínio da consciência, enquanto o surrealismo parecia marchar em sentido contrário. Breton respondeu que o que o surrealismo queria era alcançar a zona de não-discernibilidade entre consciente e inconsciente. Poderíamos ajuntar: não há um ponto de vista transcendental que reúna todas as possibilidades da divergência entre ambos. Cada uma só fala onde fala, mas só se torna “metafísica” quando pretende estar instalando o transcendental.
             O pop teria conduzido esse projeto a um outro patamar quando muda a composição em nível de conteúdo. São as linguagens parciais da “cultura” folk moderno-ocidental, que se desatrelam de sua composição unívoca projetada por uma indústria de comunicação fragmentada pelos imperativos inconciliáveis da proliferação da informação e do direcionamento ideológico, para serem investidos no seu “modo operante”, no seu modo de serem produzidos. Aqui temos um interessante paralelo com o modo como Piaget se opõe às totalidades funcionalistas. Assim como para ele, a arte pop tende a parcializar a recepção do elemento, em vez de reproduzir um todo.
             "Pregnância", "ordem", e "causalidade" eram os fatores constitutivos da “gestalt” como experiência perceptiva da presença – definindo a realização do visto em termos de boa forma, a que resolve as tensões dos elementos, ordem e causalidade integrando-os conforme respectivamente, aspectos quantitativos e qualitativos, por um lado, de valor e significado, por outro. Mas assim a inteligência era definida como a experiência do inteligível, a constituição do campo. Piaget, inversamente, ao especificar fases de formação da inteligência, mostrou que em cada fase estão presentes estruturas cognitivas de modo que seu acréscimo atinge um ponto crítico que impele à fase ulterior até a consolidação da inteligência formal. Mas nessa sucessividade das fases, o efeito de campo se revela mais descritivo dos períodos iniciais do que do operatório formal. Tanto mais se conquista a liberdade do Logos, mais se abrange o discernimento dos elementos assim como a soma das partes, menos se está preso à coerção da totalidade.
               A “psicologia da forma” ou "gestaltismo", não estava assim tão ignorante disso, mas havia pretendido que o aumento da capacidade de perceber as partes é algo posterior, derivado, desde que se atinja o fundamental que é apreender o todo, conforme argumentou Guilhaume. A análise seria derivada, não a síntese. Piaget mostrou, inversamente, que o operatório formal ou o que se acrescenta na sucessividade das fases não é uma capacidade de análise relativa a um todo, e sim uma capacidade original de lidar com as partes, não mais determinadas de início pelo todo.
            Como se sabe, esse todo é a princípio egocentrado na criança, e é pelo descentramento da sua egoidade em relação aos acontecimentos exteriores que se manifesta a progressão da inteligência até que o formal é a maturação como aptidão a lidar com proposições puramente esquemáticas, independentes de todo conteúdo concreto associável a alguma prática cotidiana.
            A totalidade é uma noção criticada po Piaget exatamente como esse fenomenologismo pelo qual um conceito qualquer não pode por princípio ser formalizado na independência da idiossincrasia do seu significado para alguém que seria, no entanto, auto-concebido como virtualmente todo mundo.
Como notou Piaget, se a totalidade como efeito de campo pode ser útil enquanto uma noção co-extensa a “equilibração”, na verdade ela tem um sentido fenomenológico indesejável pois, a despeito do que propugna, nem tudo pode realmente ser caracterizado como gestalt: a composição das forças em mecânica, não; a bolha de sabão ou a elasticidade perfeita da superfície da água, sim.
           A totalidade nesse sentido indesejado tem um alcance de irreversibilidade. Ora, Piaget constata que a inteligência, inversamente ao que se pretendeu, se bem que obedecendo às leis de equilíbrio e de totalidade, não se move na imanência das mesmas estruturas totais ou irreversíveis que a percepção. Aqui o que rege o funcionamento estrutural é, justamente, a reversibilidade.
             É assim que em matemáticas e lógica a aditividade, a compreensão dos elementos e sua independência relativa e constitutiva do todo, é fundamental a ponto de revelar-se a sua progressiva conquista o parâmetro do desenvolvimento ou construção da inteligência.
             Não obstante esses avanços notáveis, com Piaget a psicologia estruturalista expressa a contundente aporia do saber ocidental, quando se defronta consigo mesmo nos termos de um total ultrapassamento de qualquer possibilidade enunciativa de evolucionismo sócio-mental, enquanto paralelamente o evolucionismo biológico se transforma do paradigma darwinista ao que atualmente nem discrimina uma dualismo determinista indivíduo-meio, nem concebe as várias “idades” como numa qualquer continuidade valorativa, mas apenas como autônomas e auto-consistentes em si mesmas.
            Pois, Piaget que perfila as rupturas mais importantes nesse rumo, figurou um dos obstáculos na construção de uma imagem da inteligência não condicionada pelo que Derrida designaria o preconceito etnocêntrico. Isso também se poderia, aliás, afirmar para Lacan e Althusser. Quanto a Strauss, Derrida na Gramatologia mostrou que mesmo tendo manifestamente rompido com o etnocentrismo, inclusive nisso antagonizando-se a Piaget como salientou Pena, na verdade mantém uma ambiguidade paternalista que não o ultrapassa. Quanto a Foucault e Deleuze-Guattari, se pretenderam ultrapassar esse condicionamento, produziram de fatos “discursos” como a prioris inconscientes – históricos em Foucault, antropológicos em Deleuze-Guattari – que ao seu modo apenas repõe o transcendental, alargando o fosso entre o devir e a história.
              Essa polêmica a propósito da questão cultural da inteligência, tendo a teoria de Piaget por protagonista, poderia a meu ver ser focalizada utilmente numa proposta de conceituação dos fatores mais importantes na demarcação do que se transforma em termos de produção estética, desde a era pop dos sixties e seventies, ao cenário neoliberal.
              É interessante notar que atualmente, já se podem solver alguns pontos polêmicos a propósito desse cenário que foi a partir dos anos setenta designado de modo geral, ainda que ambiguamente e sem muita clareza teórica, “pós-moderno”. O esforço dessa designação de algo novo, que estaria ocorrendo presentemente, foi paralelo ao de reconstituir os grandes movimentos teóricos da época áurea do estruturalismo, digamos, de Lacan a Derrida e abrangendo os outros autores já citados, mas centrando-se no caráter um tanto enigmático daquela vertente que se especificou “pós-estruturalista” como recusa institucional que assinalei acima. Por isso, talvez, ficou obnubilada o que era importante como questão: o pós-moderno era a estabilização sistêmica do liberalismo-ocidental-capitalista ou algo de ulterior, e nesse caso, precisamente o que? A própria exposição dessa questão desse modo já é um efeito posterior aos frutos mais aguerridos da polêmica.
           Pois, por um lado, era num encaminhamento tematicamente depurado como sociológico que se expunha em várias frentes a estabilização sistêmica, que chegou a ser chamada “novo contrato social”, a leste e oeste, isto é, ainda na vigência da guerra fria, mas já na proximidade dos anos oitenta. Assim, apenas do ponto de vista do ocidente, a estabilização pareceu algo definível como o a priori histórico da modernidade – como o pensou Foucault. Aqui poder-se-ia objetar que com relação ao século XX Foucault falou em neoliberalismo em vez de liberalismo, mas de fato ele pensou ambos os termos sobrepondo os conceitos econômico e ideológico habitualmente relacionados separadamente, de modo que para ele "neoliberalismo" econômico equivaleria ao máximo liberalismo no plano cultural e institucional.
           Por outro lado, onde inversamente a Foucault se preferia manifestar as gritantes discrepâncias do processo que conduziu ao fim da guerra fria e ao cenário posterior, em relação às premissas liberais e principalmente no plano sócio-cultural, isso geralmente estava compactado em preocupações teóricas mais amplas, especialmente no front da crítica estética onde “pós-modernismo” como arte posterior ao “pop” era uma espécie de trampolim para fazer a crítica social do capitalismo tardio.
         Entre ambos, contudo, houve os estudos sociológicos menos a priorísticos e mais empíricos, que pretenderam levantar os constituintes da implantação neoconservadora na cultura da Inglaterra de Margaret Tatcher – governo que hoje os historiadores arrolam, junto ao de Reagan, como tendo lançado os pilares do neoliberalismo no mundo. Foi reconstituída a intervenção incontestável do governo Tatcher na reformulação da linguagem das instituições culturais do país, especialmente na comunicação de massas, a fim de implantar o neoconservadorismo e alijar as programações e mesmo os comportamentos liberais e de esquerda.
         O que parecia a princípio uma idiossincrasia deses governos agressivamente comprometidos com o capitalismo, tornou-se o que hoje já não se pode recusar ver como a fascistização do processo de superação da guerra fria.
         Como um cenário sócio-político autônomo, porém, o pós-moderno se mostra sempre mais irredutível a algo que conceitualmente possa açambarcar o “pós-modernismo” como horizonte da heterogeneidade da produção estética obviamente não restrita aos canais institucionais fascistizados. Subirats, a propósito, numa entrevista já do terceiro milênio publicada na Internet, mostrou-se mais prudente nesse rumo. Aprofundando sua crítica social, mas sem comprometer tanto a produção estética na exterioridade da política institucional por ele acidamente criticada nessa oportunidade em que inclusive nomeou expressamente alguns dos seus representantes, ele também assinalou focos de resistência política no terceiro mundo, como a movimentação ecológica em Porto Alegre. Seu marcante pessimismo, pelo que esses focos não deveriam supor ingenuamente estar defrontando-se com algo menos que praticamente a priorístico – para usar uma expressão bem “anexata” - não deixa de ser contrastante com o tom dos seus livros anteriores mais conhecidos.
             Assim, é a questão do terceiro mundo, cujo correlato nos setores de produção estética e teórica é a irredutibilidade cultural, o que veio a se constituir no parâmetro da problemática sócio-política na reconceituação do capitalismo após a fase polêmica a propósito do que estaria implicado de fato no seu caráter de posteridade à guerra fria e à centralidade nocional da “produção” de mercadorias. Isto é, já no cenário da automação e da internacionalização da economia. É por esse limiar que a focalização da questão teórica suscitada pela formalização da inteligência em Piaget se mostrará útil ao desenvolvimento da nossa temática.
  
  
    II )

                A expressão "praticamente apriorístico" que utilizei acima, tem por escopo assinalar uma conjuntura histórica, não uma mera contingência que poderíamos facilmente deslocar, mas em relação a que não nos comprometemos definir por qualquer aporte transcendental, isto é, totalizante ou determinista em relação ao que acontece. Pode ser que Subirats mesmo tenha uma concepção não tão relativista, mas a meus propósitos interessa sublinhar justamente que esse veio a se mostrar  um dos pivôs da problemática pós-moderna.

        A escolha entre pontos de vista determinista e a recusa disso pode ser rastreada no interior de vários encaminhamentos teóricos da atualidade, mas nem sempre houve muita clareza quanto àquilo pelo que se estava optando.
          A questão da "ideologia" retornou recentemente como um foco de incidência da confusão a propósito, havendo uma tentativa no sentido de reduzi-la associando nitidamente determinismo e indeterminismo como escolhas quanto ao modo de tratar a ideologia por sua vez sem mais identificada com a cultura.
        Seria de se ressaltar que há um sentido amplo e difundido do termo ideologia como sinônimo de cultural de modo que nem sempre é prático evitar usar a palavra "ideologia", ainda que isso não tenha a ver com algum encaminhamento teórico em si. Mas o empreendimento de redução em tela não lida com esse sentido amplo. Ele está bem ilustrado na coleção de textos reunida em "um mapa da ideologia", organizado por Zizeck.    
          Como se pode notar pela leitura, assim toda a problemática que como assinalei se mostrou relevante para os vários encaminhamentos teóricos, foi somente transposta para os parâmetros marxistas, tratando-se de optar entre considerar a ideologia/cultura determinada pela base econômica ou não. 
           Isso  pode ser uma vantagem considerável para o marxismo, possibilitando a sua renovação num momento em que a exploração do trabalho e de classe, tanto mais se mostra existir, menos se comprova bastante para lidar com o parâmetro do "ex-cêntrico" - todas as situações de marginalização e opressão que não são superficiais mas intrínsecas à sociedade moderno-ocidental expandida a nível planetário. Mas não permite descrever com exatidão o que ocorre no campo teórico pós-moderno que não se restringe certamente ao marxismo ou à sua renovação que vem se designando "pós-marxismo".
          Um dos mais graves problemas resultantes dessa limitação é a redução à questão da ideologia em sentido restrito, de toda a problemática na cultura. Por exemplo, é habitual  encontrar leituras de Foucault  em que aquilo que ele teria feito ou descoberto seria que a ciência é ideológica.  Nada menos aplicável à Foucault que distingue com nitidez ideologia como opiniões e crenças mutáveis que rivalizam ou proliferam no senso-comum, e ciência como conjunto de técnicas e aparatos rigorosos, cujo objeto são enunciados verdadeiros que se comprovam ou se demonstram como tais. Essa distinção é, aliás, rigorosamente marxista de antes da renovação, quando "ideologia" significava concepções distorcidas a propósito da realidade, não do modo atual como uma "doxa" ou desempenho não setorizado e cotidiano do comportamento humano.
          Mas o que faz com que Foucault, justamente quanto a isso, tenha se declarado não-marxista, é que em vez de julgar a verdade da ciência objetivamente, ele trata o verdadeiro como efeito de "discurso", isto é, de um regime de inteligibilidade variável historicamente que se define como um inconsciente social.
           Aqui  Foucault poderia parecer um tanto ambíguo. Em as palavras e as coisas ele distingue verdadeiras ciências contemporâneas (estruturais: biologia, linguística, economia política e psicanálise) e pseudo-ciências humanas. Em microfísica do poder, onde ele trata essa distinção de ideologia e ciência, as humanas são exemplos dos aparatos de verdade científicos - protocolos, observação controlada, sistematização de dados, etc.
           Mas na realidade ele já havia posicionado em as palavras e as coisas, essa pseudo-ciência como um efeito das ciências estruturais que haviam provocado um vazio de explicação totalizante de mundo que, inversamente ao que era considerado científico antes, elas não podem mais de forma alguma fornecer. Então criou-se esse efeito pelo qual algo foi requerido pelo próprio Saber, para preencher o vazio, a prática cientificizante, mas não científica de fato, das ciências humanas como explicações humanísticas totalizantes assim.
          Eu mesma não concordo com essa posição de Foucault a propósito das ciências humanas, pois me parece que ele é que totalizou o seu campo, quando ao estudá-las na sua história vemos que se manifestam de formas plurais, e se há uma crítica da objetividade totalizante, isso é muito praticado justamente nessa área de onde vem a interlocução da irredutibilidade cultural.
         O importante aqui, contudo, é notar que por discurso ou inconsciente social Foucault estava lidando com algo que pudesse historicamente funcionar como o que numa época fornece a solidariedade, sem prejuízo de sua autonomia, entre ideologia, ciências (saber), práticas institucionais (poder) e regime de subjetivação.
          Assim, o discurso seria a priorístico da época, o "sistema" social e histórico, mas ele só poderia ser recuperado estudando-se cada um dos três campos, menos o da ideologia,  enquanto manifestações localizadas do a priori. O a priori de época teria portanto uma expressão autônoma como a priori epistêmico, do poder e da subjetivação (sexualidade).
         Não há, pois, uma tese da ideologia dominante em Focault, bem inversamente, as ideologias como crenças ou opiniões variadas não são controláveis nem identificáveis biunivocamente a algum parâmetro institucional, por exemplo, às classes ou ao cotidiano generalizado, e é nessa região da ideologia que se pode inclusive manifestar algo que escapa ao a priori - por exemplo, ele julga que a recusa de transfusão de sangue por uma determinada seita protestante significa a recusa do controle (bloco poder/saber) médico. Assim também podemos notar que o a priori foucaultiano não é "formal", e sim "histórico", existe e pode ser reconstituído mas não é algo inerente a uma natureza do homem.
          O inconsciente social é estudado como formação do conteúdo historicamente variável do simbólico, o que cada um constitui subjetivamente como linguagem e valores intersubjetivos.  A sociedade em geral é então o domínio da lei, e em particular na sociedade moderno-ocidental esse domínio se desenvolveu como "dominação",  "discurso" onde a lei se reveste como um aparato onipresente de controle entre os sujeitos. Nessa dominação moderno-ocidental, o falado na linguagem é uma "verdade" obcessivamente interrogada, a verdade identitária do indivíduo. Os outros contextos de época ocidentais também formam contextos de dominação, mas nunca antes a verdade foi atribuída à personalidade mesma, nunca a dominação foi dessa magnitude.
              Subsiste, segundo Deleuze, o problema de saber se Foucault pensou haver um simbólico ou sociedade que pudesse não ser "dominação", na exterioridade da modernidade e/ou do ocidente. Outro problema é se Foucault pensou haver ou não "fuga" em relação ao a priori. Eu creio que quanto a este segundo problema, se pode afirmar que Foucault respondeu numa entrevista que ele mesmo se pensava estar contribuindo para mudar a sociedade. Ora, se o que está sendo estudado sociologicamente é o simbólico mas somente enquanto seu conteúdo é variável historicamente, o que constituímos fundamentalmente é o simbólico enquanto formal, e o conteúdo é então variável também do ponto de vista do sujeito. Ele pode, dentro do parâmetro da teoria, ser sujeito de uma crítica social. Essa linha gramatológica, a meu ver, precisa se estender a mais pesquisas tendo por horizonte o saber e as formas de intervenção na margem, ao longo do período contemporâneo - desde o século XIX.
          A teoria foucaultiana é  um exemplo de que a redução à questão da ideologia não é adequada ao tratamento epistemológico do campo teórico da atualidade. Já a questão do a priori, que tratei como opção entre determinismo e indeterminismo não reduzida ao conceito marxista, também não significa apenas uma opção entre o formal e o histórico, como na oposição marcada por Foucault. E sim, a meu ver, algo que poderia ser aproximado ao hiato entre as teorizações de Foucault e Derrida como escolhas entre tratar o histórico como um campo sistematizável ("discurso") ou uma complexidade não redutível conceitualmente, ainda que conceituável parcialmente (não "a priori").
           Essa decisão vai  mostrar a magnitude de sua importância, quando na atualidade é à questão do terceiro mundo que restou o ônus da crítica social ao capitalismo que já não pode mais ser desatrelado da questão cultural, logo, da crítica à metafísica ocidental já conectada à questão mesma do desejo, do inconsciente. Pois, a opção foucaultiana significa manter-se no pressposto de que é possível compreender a modernidade e a dominação, sistematizando a sociedade ocidental, enquanto a opção gramatológica de Derrida implica não considerar isso possível, pois para compreender a modernidade ocidental, o saber e o poder, será preciso estabelecer em que complementaridade "ocidente moderno" se torna pensável, e isso é exatamente o que vem a ser o terceiro mundo na sua formação marginalizada, econômica, política e culturalmente.
               Aparentemente temos assim a repetição da polêmica Sombart-Weber, de inícios do século XX. Weber construiu o primeiro sistema fechado da economia ocidental capitalista que integra o fator sócio-cultural e a exploração de mercado de um modo que não acarreta o reducionismo marxista do cultural pelo econômico. Mas fez-se ver a Weber que a economia capitalista depende fundamentalmente da colonização e do imperialismo - não poderia ser descrito na base sistêmica. No entanto, Weber respondeu a Sombart com cifras, argumentando que o retorno econômico da exploração da margem, por exemplo, à época do escravismo colonial, nem sempre significou a vantagem econômica esperada.
          O questionamento, porém, não devia ter sido conduzido apenas na base econômica, ainda que mantendo-se essa perspectiva, a evolução histórica acabaria dando razão ao argumento de que o capitalismo ocidental é economicamente dependente do "dependentismo" que produz ativamente na margem. Mas, sim, na base da construção do ego geopolítico da dominação planetária ocidental que não opera apenas pela exportação de um modelo sistêmico a ser repetido localmente com os mesmos pró e contra. Ocorre como está expresso atualmente no mapa geopolítico do conflito norte-sul, localizando um sul dependente e dominado por um norte desenvolvido e dominador. Derrida mostrou a dependência da produção do saber moderno-ocidental do conhecimento da alteridade de margem, na Gramatologia, acentuando que esse processo não se descreve por uma acuidade da inteligência ocidental na compreensão do que descobre no mundo, muito inversamente, descreve-se como as contínuas defesas (fantasias, ficções) que o ego ocidental produz como "saber" (teorias totalizantes), enquanto gradativamente a alteridade se impõe como o que o ego se confronta em termos de realidade.
         A  opção entre determinismo e indeterminismo,  vai  desdobrar-se em vários focos teóricos como escolha entre a recusa de fornecer uma totalização/definição do campo, como em Derrida; ou pelo contrário, tratar a problemática em si como um campo, à Foucault, ainda que estrutural, não descrevendo funções. Por outro lado, se a opção, contrariamente  à que proponho, é pelo discurso e pelo a priori, então há ainda a bifurcação entre os que o tratam foucaultianamente, de modo descontínuo como a priori de época, ou os que o tratam de modo contínuo, como uma explicação subjacente a toda marcha da história existente.
          Quando nos aproximamos da atualidade, em que a questão do terceiro mundo e a irredutibilidade cultural deixa de ser contornável, parece-me que as opções pelo fechamento sistêmico ocidental vão deixando de se mostrar oportunas. Eu testemunhei esse fato por ter inicialmente optado por Foucault, julgando que ele poderia ser complementado por Deleuze-Guattari,  mas a ampliação da visibilidade da questão cultural mostrou as limitações dessa opção, e a necessidade de operar a transição mais profunda que enseja a desconstrução com Derrida. A pós-modernidade só torna essa aplicação fecunda enquanto  o que nos permite tangenciar a sua aporia, mas as questões que se apresentaram desde a informatização estão exigindo encaminhamentos novos, até para se tornarem enunciáveis.
          Um foco que deveria ser logo destacado para exame, é a teoria feminista, seja porque exemplifica bastante bem uma tematizção da fronteira do marxismo tradicional como inadequado ao tratamento da opressão não-classista nem do trabalho; mas principalmente porque não correspondendo de forma alguma  ao estereótipo sectário, a teoria feminista é um horizonte conceitual plural, e sendo assim nela se performatizam as opções teóricas em curso no presente histórico. Mas um terceiro fator que só se mostra na sua importância tanto mais a visibilidade se concentra nos acontecimentos mais recentes, é que a controvérsia teórico-feminista ensejou, como assinalei, um alcance propriamente epistemológico cujo desdobramento é extremamente útil e ilustrativo do cenário "pós-modernista".

      III )


          O saber ocidental em que historicamente se demarca a produção teórica letrada, foi gradativamente se revelando num impasse cuja raiz é o paradoxo de sua própria instauração. Contrariamente às fantasias de uma teoria-tradição, cujo passado abrange desde a Micenas mítica, a história das ciências humanas demonstra que no máximo, mesmo assim para sustentar considerável margem de controvérsia, podemos rastrear suas origens ao início do século XIX.

          Na verdade, algumas das ciências humanas não são proficuamente sustentáveis com esse recuo de duzentos anos. Seguramente não é o caso da sociologia como praticada no século XX, cujo limiar é o panorama pós-positivista. Além disso, qualquer questionamento em humanities tem que estar situando-se na premissa de que não se pode generalizar da psicologia a sociologia, nem o inverso: "sociedade" não é somação de indivíduos, nem o "sujeito" é o reflexo da sociedade.
         Em todo caso, o que estamos focalizando agora é que em humanities, tão logo se tenha um corpo teórico coerente na pluralidade das teorias que abriga, em termos de uma disciplina determinada cuja prática se comunica ao presente, aquilo que poderíamos localizar como seu "objeto" é a alteridade cultural. A exceção, que seria a psicologia, poderíamos demonstrar que depende da quebra da premissa ontológico-intelectiva para emergir como uma problemática da subjetividade, isto é, tendo por visibilidade um sujeito pensável como o sujeito de seus atos mundanos - em vez de sede de ideias.
                É espantoso que Foucault tenha afirmado que a etnologia não depende da "situação colonilizadora" para emergir - a não ser que ele quisesse expressar que o assim chamado encontro de culturas poderia não ter sido aquilo que foi. Até Kant, todo conteúdo que virá a integrar as ciências humanas podia ser e era sistematicamente abstraído quando se tratava de teorias votadas a definir universalmente a constituição de cada campo que assim não podia desenvolver-se de forma autônoma à filosofia. Fazer tal abstração era a única tarefa teórica antes do Romantismo, em relação à sociedade, mente, história e cultura.     
                A nação contemporânea nasce, nesse mesmo momento de coalescência das ciências humanas, dentro desse novo parâmetro de pluralidade cultural que é oposto a toda concepção tradicional de uma sociedade como homogeneidade étnica. O novo parâmetro é a realidade histórica da ruptura do antigo regime das monarquias ou sociedade estamental. Mas essa realidade é intrinsecamente relacionada à entrada no rol das nações, dessas realidades de margens, as ex-colônias, cuja população é heterogeneamente formada, assim como na Europa as nacionalidades estão em intenso processo de reacomodação dentro dessa mesma problemática da heterogeneidade de sua formação.
            Assim, a emergência da contemporaneidade é a do paradoxo nos termos do saber ocidental, isto é, o imperativo de pensar o outro. Esse imperativo não funciona sistemicamente, como vimos. Ele não é diretamente cumprível por um saber que está ao mesmo tempo encarregado do ônus da crítica do seu passado marcado pelo imperativo lógico-identitário. Além disso, mesmo que a própria emergência de uma ciência em sentido contemporâneo - empírica ou humana - implique já ter sido feita a ruptura e algo da crítica, a dominação contemporânea do ego ocidental não funciona geopoliticamente senão por meio da fabricação da tradição lógico-identitária, por onde se modula a redução do sujeito de atos a sujeito da história identitária da civilização-cientifização-industrialização- racionalidade, esse sujeito da história/civilização sendo o ocidente que agora nocionalmente se lê como a centralidade do centro, a identidade do que possui indentidade. Isso não ocorre antes do positivismo, que foi a pioneira justificação do racismo em escala planetária por uma ciência sócio-evolucionista, baseada no que era aceito como científico.
          Mas o positivismo não pode obter vigência, tão logo essa base mostrou-se inviável, na superação de determinadas condições da pesquisa evolucionista que ainda podiam fornecer generalizações simplistas de suas premissas na base de uma interpretação da razão universal. O paradoxo da alteridade, contudo, não foi confrontado assim, desde aí. Ele continuou recalcado por generalizações teóricas que continuaram o mito da superioridade ou progresso ocidental por outros meios.
            Ou seja, em todo caso, contrariamente às evidências das pesquisas de campo que vão se acumulando em humanities, mostrando que não há generalização possível dos conteúdos que precisam ser tratados na sua especificidade, o que se generalizava como "teoria" eram modos de se contornar as evidências a fim de continuar tratando os dados como redutíveis a uma história ou sistema de unidade identitária, por onde a alteridade era neutralizada como anterioridade e o ocidente, a identidade em relação a que o outro era Outro, era o termo do progresso, por onde o Outro se reduzia apenas ao que estava para se integrar ao Mesmo.
          A falácia - ou melhor, fantasia -  é a mesma que hoje espantosamente se pratica quando se trata do homem e do animal. Pergunta-se se o homem é igual ou diferente dos outros animais - como se houvesse algum Outro animal que resumisse a condição de todos os animais que não são homens. Mas obviamente esses outros animais  não são iguais entre eles, logo, cada um deles não pode ser igual ao homem  tanto mais o homem seja um animal entre outros.
        As práticas de dominação cultural na contemporaneidade funcionam na base dupla de que se existe um saber, ele é o saber de uma identidade última indeslocável, e de que somente o ocidente sabe que o saber é esse saber da identidade última indeslocável, portanto, que o ocidente é essa unidade-identidade a qual recorrentemente, é saber desse saber da identidade, etc. Toda linguagem da dominação cultural, em vez de ser uma hiância formal pura como pensava Lacan, é o trânsito desse imperativo pelo que o outro não é pensável, não pode ser objeto do saber falado na proposição atributiva ("a é b").
          Por outro lado, toda ciência contemporânea está confrontada pela necessidade de falar a alteridade seja porque sendo empírica, o fenômeno não é pré-ideável, e o devir é sempre outro; seja porque sendo cultural o que está circulando são linguagens não regidas pelo imperativo aristotélico da atribuição - isto é, ainda que a atribuição possa ser feita, tudo nessas culturas proíbe que ela seja ontologicamente generalizável. Ora, não devemos mais aceitar atualmente, que na Grécia a ontologia Aristotélica era a constante na cultura, bem inversamente, desde o cenário da Polis ateniense a constante é o paradoxo e o ceticismo que não significa negar o conhecimento mas mostrar que é relativo às suas bases empíricas, somente.
          É um grave erro proceder como se a democracia fosse um regime de igualdade étnica ou de classe, que teria estendido a igualdade aristocrática a um todo social suposto redutível a um conceito unitário - de forma oposta, a democracia é o regime onde a cidadania ou nacionalidade é pensada em função de uma heterogeneidade populacional, e mesmo que não tenha sido inicialmente o objetivo dos teóricos e políticos da nação contemporânea, não há outro modo de resolver o problema de sua composição que é justamente o fato de ser heterogênea.
        Assim, a democracia é resultado histórico sempre que a composição de forças local excede uma dominação identitária local. Mas projetada em escala planetária, a luta dessas forças - entre as facções que se unem por sua heterogeneidade com o objetivo de alcançar a independência política, e a facção aristocrática que pode ou não estar projetando uma liderança única (monarquia), se tornou um problema novo, cuja expressão só veio à luz na atualidade da assim designada internacionalização da economia, não obstante ser esse o problema que habita a história desde as Grandes Navegações.
          Não é linear a composição dessa luta, uma vez que é na margem que são forjadas pseudo-camadas dirigentes cuja função é apenas manter a dominação do capitalismo central (europeu-estadunidense), e é nesse "centro" que também está sendo marginalizado o que pode ser diferenciado da lógica identitária cujo desejo é justamente essa marginalização do outro, que nessa paralogia não pode ser outro mas que está sempre se alterizando seja por seu comportamento, ou origem étnica, etc. Ora, o problema da teoria de certo modo se inverteu quando, na atualidade, compreendemos o paradoxo e podemos enunciá-lo. Como, de que lugar teórico, se poderá atribuir, por mais que se queira,  a alteridade do outro?
         Ninguém é outro para si mesmo - ou, se há culturas em que a alteridade não é o problema da identidade,  como vamos tratar sua alterização marginalizante em relação ao ocidente, sem reduzi-la a "um" outro, ou seja, a um mesmo?
        A "teoria" em humanities, em ruptura com os prolongamentos das soluções identitárias que marcaram época ao longo da história das disciplinas, atualmente se pratica como "estudos" de situações alterizadas em relação à lógica identitária ocidental macho-centrada: as mulheres e  homens que não ostentam o perfil ou o desejo machista, as etnias e/ou culturas na exterioridade do preconceito ocidental, os assim chamados homossexuais, os não-proprietários, os pobres, etc.
        A teoria tem assim que lidar com essa questão "filosófica" da alteridade,  para sequer esboçar aquilo em relação a que se posiciona, e essa questão se torna a que comparte as várias opções teóricas no interior de um mesmo encaminhamento de "estudos" . É por isso que a teoria tende a substituir a "disciplina", ainda que não por solver a necessidade empírica do trabalho de campo, e bem inversamente, por não mais abstrair das suas evidências. A cada vez que se coloca essa questão num contexto de alteridade, vemos que ela não pode ser respondida de modo que valha para outros contextos. Não há uma alteridade generalizável. Por isso, mas também porque sendo assim não pode ser um parâmetro linguístico objetivista o estruturante teórico, creio ser aplicável aos estudos a expressão "retóricas da otherness", uma vez que sempre se está consciente de que a linguagem da teoria não é transparente nem dado prévio à sua construção, pois o que fala na teoria não é o sujeito da langue da dominação cultural.
        Aqui podemos examinar a contraposição entre duas posições proeminenentes quanto a isso, no interior da teoria feminista. Trata-se da questão essencial do que é "gênero", e num situamento mais recente, essa questão que polariza muito da teoria ao longo do século XX, veio a ser transposta como a questão das "relações" de gênero, isto é, não substancialmente o que é feminino ou masculino, mas se há ou não constantes transculturais na complementaridade nocional que obriga esses dois termos como polos entre-implicando-se variamente conforme o referencial sócio-cultural e histórico localizado. Assim, quando se indaga a propósito de que como conceituar relações de gêneros, estamos ao mesmo tempo querendo saber se há alguma constante transcultural pelo que podemos identificar o que é opressão de gênero, opressão cujo objeto são as mulheres como dominadas num campo social.
          Quando se adota esse referencial, notamos que por relações não se denota qualquer polo identitário como o telos da apreensão, mas se está tematizando algo que se mantém numa pluralidade que requer uma multiplicidade para poder sequer ser pensado, como também o pensamento se instala num âmbito de variação da presentação das relações que não poderiam, como se compreende, ser determinadas num estado fundamental ou ideal, mas somente projetar o que seriam formas igualmente variáveis de não-opressão.
           Assim, tanto por falar em nome de um Outro (as mulheres reais, em vez do machismo tradicional), quanto por ter solvido a unidade objetiva para instalar o pensamento nessa pluralidade onde é um efeito de alteridade (marginalização, suplemento) que se deve tematizar, vemos que a teorização feminista requer critérios imanentes de avaliação. O que precisamos é ter a estimativa da sua tarefa, e então há propósito em questionar do seu cumprimento.
              Na expressão de Jane Flax, trata-se de “como entender e (re)constituir o eu, gênero, conhecimento, relações sociais e cultura sem recorrer a modos de pensar e de ser lineares, teleológicos, hierárquicos, holísticos e binários”.
            No artigo de Seyla Benhabib, o escopo não sendo a teorização feminista em si, mas responder à indagação sobre se “poderá haver uma contribuição feminista à filosofia moral”, há uma reserva de espaço para, sucintamente que seja, definir as premissas que são constituintes dessa teorização feminista. Trata-se então de afirmar a existência de um “sistema gênero-sexo” não contingente, mas como “um modo essencial pela qual a realidade social é organizada, simbolicamente dividida e vivenciada na prática”. Ou seja, um sistema trans-histórico que explica o que ocorre historicamente.
             O sistema é assim “a constituição simbólica sócio-histórica e a interpretação das diferenças anatômicas dos sexos”, mas o variável que poderíamos atribuir a algo como “interpretação” numa acepção “sócio-histórica”, não elide a constante pela qual todos os sistemas gênero-sexo conhecidos são atribuídos por Benhabib como tendo “contribuído para a opressão e a exploração das mulheres”, de forma que junto à análise sociológica de cada forma particular de sistema, a teorização contém um elemento de “crítica previsiva-utópica”, atuando em níveis da situação local a diagnosticar, e da perspectiva geral quanto ao futuro como projeção de uma situação feminina não oprimida.
             Ora, se houve o deslocamento de critério apontado, a questão não poderia ser, inicialmente, o quão contrastante com uma retórica da otherness a atribuição de uma constante a-histórica e sistêmica vem a ser, ou, mais precisamente, como divergem Flex e Benhabib a propósito da posição de um sistema gênero-sexo assim – Flax nega-o explicitamente ao inseri-lo entre sistemas explicativos que a seu ver são predominantemente deterministas.
          Após o conjunto de argumentos que Flax reúne para mostrar como os vários sistemas deterministas são falhos, por onde se coam criticamente os argumentos que cada sistema explicativo costuma manejar em seu proveito, ela vai estabelecer em que “as filosofias pós-modernas podem contribuir”, não como simplesmente aplicadas na teorização feminista, mas “para um auto-entendimento mais preciso da natureza de nossa teorização”, ou seja, a contribuição se verifica  em um nível metateórico.
         Essa contribuição é expressa, conforme Flax, por uma negativa liberada pelos filósofos chamados pós-modernos: negação da possibilidade de uma simultaneidade entre afirmação da historicidade das categorias formuladas como axiais ao pensamento filosófico, no sentido de que elas agora derivaram para a relatividade social de sua constituição, e de que resta alguma teoria capaz de “revelar a Verdade do todo de uma vez por todas”. Pois,  de qual “ponto de arquimedes”, colocado “fora da totalidade” como de “nossa inserção nela”, um discurso com tal abrangência poderia situar a sua perspectiva?
         Mas não deveríamos supor, a princípio, que essa negativa está ignorada na proposição sistêmica gênero/sexo, se o que se entende por isso não é a declinação de um objeto identitário, digamos, uma totalidade social, mas o mapeamento de posições alterizantes numa lógica de dominação que não mais se postula  numa generalidade do que seria o “social” ele mesmo. Assim, do "outro generalizado" ao "outro concreto", conforme a expressão de Benhabib, certamente se mantém a terminologia do ego, mas este não está definido como a identidade de natureza, e sim como uma função plural, abrangendo constantes como a condição biológica, incorporada, de cada um, e variáveis, como a historicidade e a psicologia da pessoa, mais a inserção situacional igualmente incorporada na realidade sócio-histórica do gênero. 
          Não creio que não se poderia instalar uma certa decalagem de progressão entre ambas as posições na sua face explícita – de afirmação ou negação da utilidade da constante sistêmica incorporada, nesse caso, pela partição do gênero. Muitos fronts retóricos da otherness, como da negritude, ou de estudos culturais, me parecem ter efetivamente transitado de uma postulação inicial assim – que se apropria do relato da História suposto como um arqui-texto de todas as histórias possíveis, mas em proveito do que para uma perspectiva mais generalizadora iria parecer apenas uma das facetas da dominação que essa história, agora já todos concordam, relata – para uma negação desse uso da história como meta-relato.
          Mas como a generalização aqui nunca se mostra proveitosa a não ser como um certo Ethos da cumplicidade de toda a gama de pontos de vista envolvidos com relação ao objetivo de emancipação da opressão, não é que se irá retroceder ao que já não se considera válido como procedimento, mas sim que se pretenderá instalar a possibilidade desses estudos, enquanto reversivos do parâmetro objetivo identitário da “ciência normal”, numa reversão do que a fundamenta metodologicamente, seja como for que isso se desenvolve, isto é, independente de como se deverá, posteriormente, contar a história do percurso desse outro campo de atividade cultural.
            Ora, se há uma chave dessa problemática, ela me parece poder ser designada nessa relação instauradora do pensar com a História. Pois uma premissa comum a Flax e Benhabib, a meu ver, é que o deslocamento que permite re-situar a teoria em relação ao discurso filosófico ocidental, e por aí, uma “filosofia pós-moderna” não deixa de ser uma expressão irônica ou instauradora de uma problemática, em vez de um enunciado hipotético a propósito de um ser de razão, é o princípio pelo qual as categorias fundadoras devem ser historicizadas.
         Assim, uma indagação a meu ver útil para orientar nossa recepção crítica das retóricas da otherness, seria - historicizar como? Pois parece nítido que isso depende de uma concepção do que vem a ser história, se ela não mais pode ser atribuída como história de um sujeito, o ego no centro, como relato de legitimação de sua centralidade, via discurso ocidental explicitado da racionalidade e prática de racionalização social, pela produção num ou noutro sentido do Split entre burguesia ou proletariado como sujeitos dessa narrativa da civilização universal.
          É aí que se instaura o descentramento, uma vez que agora não se pode mais creditar um Selbst como fundamento não-mítico da História, ou seja, não se pode tratar a história ao modo de um meta-relato, e o deslocamento visível nas retóricas da otherness, vai ter que ser de algum modo tangenciado como o novo estatuto do problemático no horizonte da cultura ocidental.
          Considerando ser esse o caso, creio estar habilitada uma leitura desses dois artigos, tendo como base o fato de que ambos portam leituras da história da filosofia como fundamentos do discurso de gênero sócio-historicamente situado moderno-ocidental. Assim, o escopo não será tanto que história (da filosofia) é contada, mas como a história (do Outro) é performatizada, mesmo que esse nível de estruturação do texto esteja apenas implícito. Ou seja, não se pretende julgar de como a história da filosofia é contada conforme os critérios do gênero história da filosofia, mas sim que critérios desse outro gênero de história, que permite reler aquela, estão sendo liberados, aplicados, ou até mesmo conceituados.

   IV)

             O deslocamento em que as retóricas da otherness se instituem interpõe começar por onde a filosofia disponibilizada ocidental usualmente acaba, por que os "estudos" devem produzir seu exercício de pensamento revertendo a relação usual entre o fundamento e o suplemento. Não se trata de uma simples inversão, pondo o suplemento onde se colocava o fundamento, mas sim mostrar a paralogia do fundamento, por não aceitar desde o início como obviedade a condição suplementar do suplemento.
            Em vez de simples inversão,  só se traz o suplemento para o locus do antigo fundamento como o que deve agora portar o nexo da inteligibilidade de algo mais que um fenômeno, e do porte de uma área de problematização. Mas com isso, inevitavelmente o movimento suplementar se reduplica por um deslocamento em relação ao campo do saber.
           Enquanto “teoria” ou exercício de “teóricos”, o feminismo não pode deixar de colocar em questão o saber enquanto o que habitualmente definimos como produto do exercício teórico, se é nesse campo de saber que foi construído o conjunto determinante da relação usual de fundamento. 
           Assim, Jane Flax utiliza a desconstrução (Derrida) como a fórmula dessa situação da “teoria”, uma vez que os desconstrucionistas foram aqueles que inviabilizaram a ideia racionalista de que o saber e a linguagem são transparentes ao ser que eles então iriam comunicar. O que desconstruímos é o dado condicional do suplemento por um fundamento que se coloca como tal pelo situamento suplementar do suplemento. É preciso desfazer a pseudo-obviedade desse caráter suplementar, como já assinalei.
            O posicionamento do  artigo de Flax não institui por isso um otimismo da teoria universal. Inversamente, o que a desconstrução veicularia, conforme ela, é uma limitação imanente ao discurso, pelo que “qualquer posição feminista será necessariamente parcial”. Se é justamente a noção de categoria todo-abrangente que se desconstrói, nenhuma idealização feminista de “mulher” ou “homem” ou “sociedade” pode parecer estar sendo fornecida como algo independente de um ponto de vista, mas por essa expressão, ponto de vista, não podemos supor algo privilegiado em relação ao ser do fenômeno, como pensaria Bergson nos termos de algo a-histórico ou ontológico, mas algo implícito, imanente a ele mesmo enquanto fenômeno. Nós nos movemos numa historicidade, e enquanto a teoria é social, o que se reconstitui não é um ponto de vista particular, mas sua movência numa trama de relações.
           O  problema não é tanto a crítica que se possa fazer aos resultados, mas a interrogação do que a teoria é em termos de um exercício historicamente efetivo que só pode ter trânsito no campo do saber, mas que com este enquanto tradição e instituição, está em conflito ou pelo menos deslocado. Esse é o mesmo problema que poderia ser descoberto em trânsito na arte desde o pop: que é a arte, se ela não mais se dispõe como uma tradição, mas inversamente, questiona, desloca e problematiza toda tradição cuja instrumentação é o poder que por esse meio comparte os lugares e distribui a fixação dos sujeitos? O pensamento taoísta ou zen que inspira muito do pop parece estar relacionado a uma recusa de que se possa preservar a problemática nesse direcionamento. Não há resposta para a questão do universal - do tipo que é a arte? Paralelamente, não  há "ismo" teórico que possa fazer algo melhor que inviabilizar que se confunda o seu exercício com alguma totalização do Real  intotalizável. 
              Essa questão Rorty e os críticos da desconstrução  não consideram, do contrário não teria ele  limitado o momentum feminista a um dilema entre prática (material) e ideias (consciência ou linguagem), dilema que para ele  o pragmatismo havia começado por elidir. Pois, inversamente a poder totalizar o desejo feminino, a teoria feminista precisa começar a se colocar a sua questão, do contrário se resumirá a uma seita que não respeita sobretudo a heterogeneidade das mulheres reais, como na triste história da primeira onda feminista que hostilizava as mulheres na exterioridade da "produção" (mercado de trabalho) numa fantasia da indústria como panacéia social condicionada pela ortodoxia stalinista, o que hoje deploravelmente se repete pela ultra-direita que usa o mercado para condicionar o comportamento subjetivo e explorá-lo midiaticamente .
              Como Flax notou, a questão que impulsiona a reserva crítica dos teóricos feministas ( independente do sexo "biológico", pessoas interessadas na saúde das relações de gênero) em relação às suas possibilidades, está nisso pelo que não está garantido que saibamos o que podemos fazer, não porque não tenhamos ajuste ao objetivo, mas porque não está garantido que estejamos aptos a declinar qual deva ser ele para todos os casos, independente das diferenças entre as pessoas e culturas. Não queremos que as mulheres sejam oprimidas, mas que é essa opressão em cada caso? Existe algum modo de defini-la de forma que todas as mulheres concordariam ser esse o caso? Não sabemos ainda se podemos comprová-la como algo não estritamente interpessoal ou acidental, ou como devido a educação ou ainda a uma tendência psicofísica, nem, o que é o mais importante, se enquanto pessoas dentro da situação de oprimidos, podemos garantir que nossa posição seja conveniente para declinar os termos relevantes da situação da opressão.
             Assim, parece-me inteiramente inválida a comparação que Rorty estabelece entre a teoria feminista e a pretensão, que poderíamos designar positivista, de Marx e Engels, de fornecer um critério científico, inteiramente não fantasioso, da postulação do que é real. Ora, ele mesmo aceita que essa pretensão não habita o campo atual do saber. Logo, não deveria a seguir retroceder para atribuir à teoria feminista essa mesma pretensão, como o que hoje seria o que “mais nos aproxima” ao partido e ao programa marxistas, mas como a questão epistemológica da otherness.

           O leque de questões que Flax destacou como mais importantes às indagações que os teóricos feministas podem ao menos levantar como relevantes ao problema da opressão, mostra que aquilo que impulsiona o pensamento feminista não é a opressão, mas a compreensão do que vem a ser o gênero enquanto algo socialmente constituído. Isso transpõe o exercício como teórico, uma vez que não se trata apenas de um conjunto de circunstâncias adversas que devemos confrontar por uma prática igualmente empírica. Mas nesse ponto encontramos aquilo que vínhamos enunciando, como a questão epistemológica da otherness.
            As indagações que se colocam desde que o objeto teórico é o gênero, logo, desde que o feminismo o declina numa enformação sociológica, ou psicológica, antropológica ou histórica, literário-textual, etc., não poderiam  deixar de interceptar o que vem compactado em áreas de problemas já em trânsito no campo do Saber. Não poderiam ser tratadas fenomenologicamente, descrever-se simplesmente aquilo que alguém sente ou que vivencia, incluindo suas dúvidas sobre o significado disso, pois do contrário não seria um exercício teórico, e sim apenas um espaço de depoimentos e registro de casos, mais uma veleidade a-crítica de fornecer o “saber” de uma seita, ou de uma sociedade de ajuda mútua.
           Na concepção de Flax, portanto, a teoria feminista não deve se desenvolver na exterioridade de uma aplicação bem precisa numa pesquisa determinada por um parâmetro epistêmico explicitado. Ela deve ser pesquisa de tópicos que se esclarecem quais sejam e cujo desenvolvimento  é controlado pelo aclaramento conceitual das atitudes que vão sendo assumidas ao longo da confrontação das evidências colhidas. Sobretudo, Flax critica a confusão do "concreto" ( o corpo, as práticas do cotidiano). Nós não podemos transpor para a teoria aquilo que é a imediatez da prática. Isso é o que nós precisamos conceituar.  


     V )  

            Sem romper com a exigência do esclarecimento teórico, a teoria feminista em várias de suas vertentes tem se encaminhado para uma proposta generalizada de se examinar a forma pela qual se construiu a linguagem da sexualidade moderno-ocidental. Isso, significa rever criticamente todo o saber ocidental - da história à teoria política, da psicanálise à epistemologia, todas as disciplinas em que se construiu essa linguagem, mas também as práticas sociais correlatas. Assim, de certo modo, a teoria feminista seria forçosamente uma pós-modernidade, uma crítica desse construído, e ao mesmo tempo uma desconstrução.
         Se há um sistema gênero/sexo, mas restrito ao horizonte da modernidade ocidental,  então não poderíamos defini-lo como da opressão das mulheres, mas como sistema posicional de gênero que pre-estabelece igualmente o papel dos “homens”. Aqui ocorre uma bifurcação, pois pode-se escolher tratar o sistema gênero-sexo como condicionante de, ou condicionado por, o capitalismo. A inclusão da variável de gênero na teoria marxista é uma das vertentes do feminismo, enquanto uma via mais relacionada à sociologia não-marxista tem se mostrado oportuna para o questionamento do ponto de vista da cultura. Aqui a questão importante da modernidade é a subjetividade enquanto algo historicamente situável. Antes de ocupar o papel de homem ou de mulher  mutuamente destinados, na modernidade o sujeito é  o que se destina  a rotular em geral por sua sexualidade. Particularmente, o sexismo é uma forma de exercer poder pela qual se pune a sexualidade que não confirma o princípio de que toda sexualidade é masculina.
           Essa premissa consta ainda no pesamento de Freud – onde “masculino” é sinônimo de “ativo”, e cuja concepção de insconsciente exclui que nele possa estar situada qualquer diferença, qualquer alteridade. Assim, um outro ponto de bifurcação na teoria feminista é a opção entre aceitar a psicanálise como aquilo de que se deve partir para contornar o identitário do próprio desejo como vemos em Kristeva;  ou inversamente,  ver na psicanálise mais um exemplo do discurso machista.
          O exame da construção da linguagem-sexualidade moderno-ocidental se mostrou muito útil para a controvérsia em torno de como se conceituar o capitalismo de modo que se possa explicar porque, não obstante ter havido comércio, indústria e formação de fortunas na Antiguidade, não houve lá o sistema assalariado e a rotatividade tecnológica, isto é, capitalismo em sentido pleno. Atualmente, os resultados daquele exame, mostrando o papel axial da família moderna (nuclear) na estruturação social e na formação dos papeis de gênero, são aplicados e por exemplo em Deleuze-Guattari já se encontra a definição do capitalismo como o âmbito do split (divisão) público-privado que essa formação pressupõe.
            Como já havia notado Linda Nicholson, a ironia do marxismo para a teorização feminista é que ele fornece aportes extremamente úteis desde o trabalho historiador de Marx, mas sua teoria da cultura inviabiliza um campo mais amplo de aplicabilidade. Na verdade, Marx lidava com a antropologia positivista, assim como o ilustra o Engels da "origem da família". Ali, os tipos de família constantes nos relatos etnográficos eram agrupados numa grande narrativa progressiva em que num dado momento, a aparição da propriedade condicionava a guerra dos sexos e a apropriação das mulheres, desde um momento originário de total promiscuidade sexual e ausência de lei social. Nenhum desses pressupostos pode ser aceito na antropologia atual.
             Na posição de Mary O'Brien, Nancy Folbre e Ann Ferguson, tendo-se evidenciado a limitação crucial da categorimarxista de produção para qualquer registro que não o da moderna sociedade ocidental no seu aspecto da exploração de classe, propõe ampliar o marxismo através de alguma categoria que dê conta das atividades costumeiramente atribuídas às mulheres como algo não apenas acessório na esquematização do social. A "reprodução", para O'Brien, ou a "produção sexo-afetiva" na formulação de Folbre e Ferguson, já que o termo "reprodução" já constava no marxismo com uma aplicação diferente, designando "o processo econômico através do tempo", isto é, desde a terminologia althusseriana.                   
           Uma objeção a essa oposição foi feita por  Iris Young, que a denomina "teoria dos sistemas duais", mostrando assim que a tentativa de unir as duas abordagens, marxista e feminista, não conseguiria evitar o indesejável dualismo, já que não poderia explicar as relações de gênero que ocorrem no seio da própria "produção".
             Linda Nicholson lida de outro modo com a questão do dualismo do poder - econômico e de gênero. O foco da teoria feminista incide sobre as relações de poder "no seio do parentesco para explicar relações entre homens e mulheres bem como homens como grupo e mulheres como grupo", com uma perspectiva de sua variação entre culturas. Logo, será preciso incorporar, no momento em que se tematiza a sociedade ocidental, esse surgimento da economia como esfera autônoma enquanto diferencial da especificidade história dessa sociedade.  
           A relação das mulheres com a formação do mercado de trabalho industrial se tornou habitualmente um tema pertinente da pesquisa. A questão não é a integração da mulher nesse mercado como mão de obra, pois isso por si só não significa que o feminino está sendo integrado. Pelo contrário, pode ser que esteja sendo alienado ainda mais. A questão é de como - se é que podemos demonstrar ocorrer - a organização do trabalho no regime assalariado posiciona relações especificamente moderno-ocidentais de gênero.
            Exemplificando, teríamos a exigência crítica de Nancy Frazer: seria preciso ver como e de que formas, em cada contexto histórico, as iniciativas femininas interpelaram as formações de poder vigentes e quais foram as forças que se dispuseram como reação contra essas lutas ou atitudes reais.  Na vigência moderno-ocidental, é o trabalho que ficou efetivamente como aglutinador do domínio público, concomitantemente à masculinização desse domínio, isto é, à sua identificação com um agente, o homem provedor, cabeça do casal e chefe da família, empregador ou empregado, empresário ou assalariado, em todo caso o encarregado do dinheiro.
         Por outro lado, um domínio privado constituído pela família tornou-se identificado à mulher. Opositivamente ao domínio público, trabalhista, social ou político, como Fraser observou, a consumação se feminilizou, todo o aparato de apelo ao desejo de comprar e adquirir tendo sido associado à figura da mulher e a ela destinado por ser quem se mantém doravante no domínio do pessoal, doméstico, privado e familiar, cujas necessidades materiais o domínio público e masculino se encarrega de prover.  Os dois domínios compartem exemplarmente razão (masculino/social) e emotividade (feminino/subjetivo).
         Quando a mulher é requisitada no mercado de trabalho, é enquanto provedora de uma consumação cujo sujeito não é ela mesma enquanto esse agente público laborante. Na economia do gênero, o produtor é o homem ou o ativo, o consumidor é a mulher ou o passivo. Assim, até hoje a questão feminina politicamente ventilada soa paradoxal para o marxista.
          Habbermas, por exemplo, não aceita que essa questão possa ser efetivametne política, isto é, social, pública. Por definição, ela é privada, somente podendo ter alguma expressão no direito privado. Ele considera deletério ao político que qualquer coisa privada possa trafegar naquele nível da negociação social pública. Como vamos observar mais pormenorizadamente, isso não impediu que, quando se tratou de optar entre consciência e teoria do inconsciente, alguns teórico-feministas tenham procurado recuperar algo do pensamento  habbermasiano para não precisar incorporar o inconsciente. Isso me parece absurdo,  mas não deixa de ser uma das linhas da teoria feminista atual. Uma crítica de Habbermas, que também recusou qualquer aproveitamento da sua concepção, é Iris Young.
           Em todo caso, nada no esquema que vimos sobre a modernidade ocidental como split público-privado se compromete pelo fato de que desde o início da industrialização houve o emprego feminino. Trata-se da estrutura pela qual se viabiliza o imaginário social, a qual, dada relacionalmente como vemos, já comparte determinações muito explícitas de poder como a partição de valores no simbólico. E do mesmo modo, quando mais recentemente o aparato propagandístico procura interpelar diretamente o elemento masculino enquanto sujeito do desejo, ele o faz tendo por meio a figura feminina.
          O estudo de Barbara Ehrenreich (“Os corações dos homens”) citada por Fraser, estipulou esse aparato como tendo sido pioneiramente efetivado como a estratégia da revista Playboy. A consumação/prazer (mulher) é a destinação do sujeito do desejo, o homem; é para o quê  ele se põe enquanto sujeito da produção. A
          A partir dessa rede opositiva que se tornou praticamente consensual na teoria feminista como definindo as relações de gênero na sociedade moderno-ocidental como algo não acessório e sim estruturante das relações de trabalho, do ponto de vista do desejo, desenvolve-se a crítica do aparato discursivo do saber, por exemplo, em ética e teoria social, onde essa estruturação não está explícita. Inversamente, é onde ela está atuante, performatizando a razão masculina onde todo o contexto do que é social e do que é privado, aparece como natureza, em vez de "cultura". 

         VI )
                    Iris Young desenvolve o tema das relações entre feminismo e ética ocidental, que designa a "razão deontológica", num contraste relativo com a tradição utilitarista. Novamente se insere o relato da emergência da sociedade contemporânea, sendo o traço principal dessa formulação ética a irredutibilidade entre razão e desejo, algo que surge na teoria política moderna, entre os séculos XVIII e XIX, desde Rousseau à crítica de Marx. Como se sabe, o utilitarismo é a doutrina de Bentham e dos Mill (pai e filho) pelo que a felicidade da maioria deve ser o critério da organização política da sociedade, uma vez que é aquilo em torno de que se constituiu a lógica da produção de mercadorias numa economia liberal. Por razão deontológica, Young está designando as correntes racionalistas em ética que propugnam definições universais do valor.
              Aqui o utilitarismo não está isento do mesmo traço do sistema do gênero, apenas o grafa de modo alternativo em relação à razão deontológica, pois no utilitarismo, se a moral é igualmente imparcial, no sentido de um ponto de vista da razão que fica à parte dos interesses e desejos particulares, não se prevê algo como uma especificidade normativa que impele uma razão especificamente em sentido deontológico.        
             No utilitarismo a razão é sempre, apenas, o melhor meio para atingir um objetivo, e se este é a felicidade da maioria, então a problemática dos meios estará instalada na esfera ética. A constituição dessa dicotomia de razão e desejo aparece, definitivamente, conforme Young, inter-relacionada à implementação daquela distinção entre o domínio público da soberania e do Estado, e o domínio privado da família e da pessoa.
             No polo público, estabelece-se a universalidade e projeta-se uma identidade imparcial como a identidade ideal do sujeito ético, aquele capaz de assumir um ponto de vista moral, justamente porque desvinculado do interesse particular e capaz de abranger o todo. No polo privado estaria a esfera das necessidades e desejos, que seria habitada pelo sujeito concreto, mas justamente, uma vez que empírico, não adequado à modelação do pensamento ético. A razão deontológica, é exclusivamente função do sujeito que pode se descartar do particular, do concreto, para racionar em termos de universal.
             Esse tratamento atinge a perfeição em Kant, já que a lei moral é formulada no sentido de um cálculo do universal, descartando o particular, e postula-se uma lei exclusiva à razão prática. Ainda que Young não o tenha tematizado explicitamente, concentrando-se mais em Rousseau e Hegel, quando se trata de esboçar o mesmo quadro, com Benhabib, Kant se torna emblemático.
           As coisas correm de tal modo, na concepção de Young, que quanto mais se formulam filosofias políticas e paradigmas éticos com base na generalidade ou na universalidade, tanto mais o perfil do que é público se torna um certo ideal masculino, branco, adulto e europeu, enquanto o componente feminino, assim como os despossuídos ou o outro da cultura, são alijados, no que poderia ser a estipulação do seu interesse, do âmbito da confrontação política, por definição dado como concernente apenas aos tópicos atinentes à sociedade como totalidade, ao interesse do todo, isto é, do público.
            Conforme Young "exclui-se do público aqueles indivíduos e grupos que não se ajustam ao modelo de cidadão racional que pode transcender o corpo e sentimento". Em Rousseau e Hegel, as mulheres são objeto dessa exclusão, já que, por força da arregimentação social que vimos estar em curso, se tornaram "zeladoras da afetividade, do desejo e do corpo", na expressão de Young, ou seja, ligadas à esfera doméstica que não conta como imanente ao trabalho social.
          Ela impele a indagar, como Adorno, sobre a razão dessa racionalidade normativa exigir a construção de "um eu fictício numa situação fictícia de raciocínio", uma vez que os sujeitos existentes são sempre empíricos, efetivamente engajados no seu vir a ser , em vez de abstratos sujeitos de uma moralidade fundamentalmente desinteressada e imparcial.
          Em todo caso, isso acarreta a impossibilidade de imiscuir "apelos a desejos e necessidades físicas" no âmbito da discussão pública, o que "inviabilizaria a deliberação pública pela fragmentação de sua unidade", nesse entorno social.  Mas, nota Young, mesmo no domínio doméstico a dominação da mulher se expressa na disciplina imposta a esses desejos que dão conta de "sua sexualidade perigosa e heterogênea" que deve assim "ser mantida casta e limitada ao casamento".
        A moralidade que fundamenta a organização familiar contemporânea, na verdade, está profundamente ligada à compartimentação do mundo burguês que institui a divisão moral do trabalho entre razão e sentimento, identificando masculinidade com razão e feminilidade com sentimento.

           A apreciação de Linda Nicholson sobre Marx é instrutiva quanto a essa questão da imagem do pensamento na modernidade, enquanto modelada por uma razão masculina que é ao mesmo tempo suposta transcendental ou universal tanto mais ela não resgata a sua própria parcialidade - tanto mais o feminino é o que nada tem a ver com a razão, e por razão se tem o que é universal, não parcial.  O que se possibilitou ao longo do século XIX com o positivismo, foi a conceituação do objeto neutro das ciências, tanto mais as ciências empíricas não podem ser separadas da especificidade do seu domínio, da parcialidade das suas condições de operação.
           É sintomático disso um trabalho como de  Monique D. Menard sobre Kant no qual se argumenta que o objeto neutro do kantismo é a objetividade em si de toda inteligibilidade, o que está na contramão de vasto setor da teoria feminista, como podemos notar. Todo objeto é construído, não por uma razão transcendental, e sim historicamente numa situacionalidade cuja estruturação é desejante, interessada, mas isso é o que a teoria tradicional que repete o discurso da razão paralógica, ao mesmo tempo masculina e universal, não pode aceitar, por outro lado, não podendo também demonstrar senão por algum pressuposto que se dá por evidente como que por si.
           Esse objeto neutro seria também estruturante do discurso de Marx, o puramente econômico, conforme LInda Nicholson. Porém, constituído como foi,  deixou de fora "todas as atividades básicas para a sobrevivência humana" que não pudessem ser caracterizadas pelo viés da " 'economia' capitalista".
          Esse objeto, a produção, significa no marxismo, conforme ela, justamente todas "aquelas atividades que resultam em objetos", mas que essas atividades existem independentemente de outros tipos de atividades que seriam ainda mais básicas, mas não são computadas como trabalho, é o que devia estar em questão. Essas atividades mais básicas são as que as mulheres supostamente fora do mercado de trabalho desempenham em casa, como o serviço doméstico e a criação de filhos.
            Nicholson ilustra esse problema com a crítica de Polanyi à relatividade histórica do marxismo, não geralmente conceituada. A independência do político e do econômico é apenas uma condição histórica atinente à formação de mercados em curso no século XIX. Uma produção como objeto independente, real por si mesmo, torna-se uma falácia, conforme a argumentação de Polanyi, já que o que a institui, a autonomia da economia em relação à esfera política, é apenas "a reafirmação, do ponto de vista da sociedade como um todo, da existência de um mercado auto-regulável", somente agora na contemporaneidade ocidental, tendo vindo a ser. E desde que as coisas atingem esse ponto, esse mercado tende a obter dominância, como princípio, sobre os outros princípios sociais, ou seja, constitui-se como dominação desses outros princípios.
             Estender esse objeto, a produção, para além de sua própria instituição histórica, portanto, torna-se não só ilegítimo, mas inviabiliza compreender tudo sobre o que ele se abate, na sua alteridade. Ora, dentro mesmo da sociedade ocidental, o trabalho doméstico, conforme nota Nicholson, não se subordina às leis do mercado. Mais fundamental do que a distinção de econômico e político, para uma crítica da pretensão universalizante das categorias marxistas e para seu situamento dependente de uma ambiência que "só se torna real no século XIX", está a irredutibilidade desse "econômico" fictício no seu esplêndido isolamento produtivo, ao doméstico e familiar.
           A incapacidade de situar o marxismo acarreta a indesejável consequência de sobrepor relações de classes a sociedades onde o determinante seriam relações de gênero, lá onde nunca esteve pensável a produção de objetos independente dos processos de que quaisquer atividade decorriam. Com efeito, tanto mais se descobre como comum a várias sociedades não-ocidentais a preminência da família como aglutinador dos processos sociais, quanto mais se nota que a independência entre atividade produtiva e satisfação de necessidades valorados como básicas se mostra uma característica exclusiva da sociedade industrial moderna.
          Aqui, porém, a crítica habbermasiana é que o antigo regime aristocrático que a produção ocidental deslocou como regime de liberdade pública, era justamente a preminência desse privado sobre o público. Ocorre que nada no regime aristocrático anterior à produção de mercado está anteposto a um outro tipo de lógica da razão masculina, aquela presidida pelo cristianismo. Além disso, é um vício de argumentação não discernir o sentido dos termos usados. Pois, na família aristocrática, não é nenhum trabalho doméstico o que está sendo valorizado ou pensado, a posição do trabalho é a servidão em relação à propriedade da terra.
           Assim, Nicholson antepõe que a projeção de Marx, na teoria cultural, do primado do econômico, torna-se menos significativa do que sua projeção da autonomia do econômico nesse âmbito. Isso pode ser recuperado na sua extrema relevância pelo fato de que, como ela compreendeu, essa mesma autonomia, no seu enraizamento histórico-epistêmico, está sendo implementada nos antípodas do marxismo, lá onde o liberalismo está se formulando pela autonomização do público em relação ao familiar.
         

           VII )

          Aquilo a que poderíamos chamar de feminismo duro, ingênua identificação da liberdade da mulher com a conquista do mercado de trabalho, que por outro lado não indagava dos motivos e diferenças entre as pessoas, julgando os comportamentos de um modo unilateral como se tudo pudesse ser reportado à ignorância das mulheres a propósito de si mesmas - como julgar que se usa soutien para enganar e atrair os homens, quando na verdade isso já se sabe ser um hábito saudável - resultou habitualmente nesse tipo de erro.
           Na verdade, agravou a condição das mulheres como pessoas sem direitos políticos desde que não integradas/integráveis nesse mercado de trabalho cujas características opressivas são cada vez mais postas em evidência. Situação de fato acabrunhante, pois a mulher que trabalha em casa era assim pelas próprias "feministas"  menos considerada trabalhadora do que o desempregado beneficiário da assistência social, e no entanto, a sociedade não se organiza sem esse nível doméstico-familiar que depende do trabalho dessas mulheres vistas apenas como dependentes economicamente dos maridos, parasitas. Por exemplo, sequer era colocado em questão a liberdade de escolha entre cuidar dos filhos ou colocá-los na creche: dava-se por consensual que o único problema das "feministas" era como conseguir creches. A feminista funcionava como a consciência social do capitalismo.
          Nos anos oitenta, como vimos acima em vários exemplos, já estava em marcha uma crítica dessas atitudes sectárias, radicalmente unilaterais, muito habituais de determinados marxismos, no âmbito da teoria feminista. Mas a questão da valorização do que as mulheres  heterogeneamente fazem - não mais a autoritária palavra de ordem do que elas como um só ser deveriam fazer sem qualquer atenção para o motivo pelo qual muitas não o fazem - sendo relacionada a uma crítica do saber, tornou axial a problemática do ativismo enquanto político.
         A questão era como contornar uma objeção "iluminista" como a de Habbermas, pelo que o político é o público, não o privado, mas ao mesmo tempo estar preservando o nível político da negociação onde se trata de leis e do jogo argumentativo da sociedade ocidental como aquele em que o ativismo vai desaguar historicamente. A questão era, portanto, de como conciliar a crítica da objetividade, como algo não universal e intrinsecamente relacionado à opressão do gênero, à conquista de espaço de negociação política dos interesses das mulheres reais - venho designando com o termo "real" as pessoas que são historicamente atribuídas, para si mesmas ou pela sociedade, como mulheres, ainda que seja essa atribuição, naquilo que não é uniforme e comporta a gama de valores que vão dos estereótipos sancionadores das tradições às pechas de "anormalidade", propriamente o que está em questão quando se coloca o gênero como problemática conceitual, não se o reduz biologicamente.
           Com exceção de Flax, cujo texto se inclui no volume de Heloisa Buarque de Holanda a propósito do pós-modernismo, o volume que reune os textos que estamos referenciando, "feminismo como crítica da modernidade",   tangencia essa questão em praticamente todos os aportes apresentados.
         Assim, a questão que percorre o volume, subrepticiamente, é se o modelo do agir comunicativo, baseado no que seria uma depuração iluminista da linguagem universalmente integrada, mais precisamente a teorização de Habbermas, fornece ou não visibilidade nesse sentido.
         Minha posição está mais para o enfoque de Iris Young do que para a conclusão de Seyla Benhabib, como já assinalei,  sendo pela negativa quanto a tal indagação. Mas é preciso examinar a posição de Benhabib quanto à leitura recente da história ocidental, cujo diálogo crítico se revela muito oportuno aos propósitos da atualidade em que o problema da irredutibilidade cultural tem se aprofundado desde aquela época da "segunda onda" do feminismo, quando era o "cuidar" que havia se tornado importante como ocupação habitual das mulheres e portanto, algo que poderia estar relacionado a modos alternativos de pensamento.
            

                Simplificando um pouco a elaborada exposição de Benhabib, a perspectiva ética do direito e da justiça une o piagetiano Kolhberg a Rawls e ambos a Kant. Essa perspectiva projeta o que ela chamou o sujeito generalizado como o indivíduo que, dentro de uma situação moralmente conflituosa, pode abstrair seu próprio interesse concreto e supor todos os envolvidos como indivíduos a mesmo título que si, de modo que a solução é almejada, pelo próprio indivíduo, como aquilo que contempla ao mesmo tempo todos os pontos de vista, não como o que elimina os outros como apenas obstáculos à consecução do que ele quer ou precisa.
               Um "véu da ignorância", como na conceituação de Rawls reposta por Kohlberg, se interpõe entre o indivíduo ou aquilo que ele sabe somente de si mesmo como as circunstâncias atinentes exclusivamente à sua situação concreta, ao modo da abstração de sua identidade em prol da projeção do ponto de vista transcendente a cada um particularmente dentro do conflito moral. Entre o que ele sabe dele, e o que pode saber dos outros, portanto, e tudo o que o indivíduo pode é generalizar de si a outrem.
         Ora, para Benhabib, o problema não é tanto o almejado por essa formulação, mas sim aquilo que se coloca como sua intermediação conceitual. Pois, uma vez aceitando-se que o que se coloca para o indivíduo moral envolvido no conflito é essa projeção e esse véu, articula-se o tipo de interpretação kantiana dos nexos de raciocínio que serão empregados para atingir a solução satisfatória. Isto é, sempre considerar-se-á cada tópico - os sentimentos, os desejos, as circunstâncias - num procedimento abstrativo do particular e inserido no universal.
             Não seria assim articulado para exame este sentimento de ira, dessa pessoa, nesse caso, mas a repugnância em geral que um sujeito moral ideal - logo, que todos os indivíduos racionais que se disponham a pensar de fato sobre o caso - sentiria perante essa atitude que fere o verdadeiro interesse, universal, que é prescrito pelo imperativo categórico universalizante de meios devido ao caráter necessariamente universal dos fins: repugnância, pois, dessa atitude que só privilegia um dos lados da questão, ou um desejo frente o bem estar de todos, etc.
               Ora, pergunta Benhabib, "haverá um sentimento de ira que é a mesma para todo indivíduo irado; uma essência de ambição que seja distinta de eus ambiciosos"? A seu ver, "se eus que são epistemológica e metafisicamente anteriores a suas características individualizantes, como Rawls admite serem, não podem ser absolutamente eus humanos; se, portanto, não há pluralidade humana por trás do véu da ignorância mas apenas identidade definicional, então isso vai influenciar critérios de reversibilidade e universalidade tidos como constituintes do ponto de vista moral".
              O ponto é que as situações que envolvem juízos de moralidade não podem, de fato, inversamente ao que preconiza a orientação universalista, ser constituídas na visão do sujeito independentemente do seu conhecimento na situação conforme seu envolvimento, sua história, atitudes, caracteres e desejos. Ou seja, que possa haver uma cisão real entre o indivíduo concreto e o generalizado depende de se poder estipular a generalização possível, o que não se pode dar como certo na perspectiva formalista de Kant a Rawls e Kohlberg, uma vez que ela depende da assunção de um conhecimento da situação totalmente independente desses fatores concretos.
              Mas, desde aí, Benhabib propõe que a tarefa é projetar uma ética que mantem as regras do jogo dialógico pensado na imanência do universal, para que nessa confrontação racional os agentes "possam definir suas identidades concretas com base no reconhecimento da dignidade uns dos outros, como outros generalizados". Isso ela supõe não ser o mesmo que pretender "justapor o outro generalizado e concreto", como objetaria Flex, mas sim transformar o sentido da questão do sujeito ético ao mesmo tempo que preservar a noção de que a situação ética, sendo pública no sentido de abranger a pluralidade de agentes e a impossibilidade de redução a um ponto de vista pessoal, seria essencialmente comunicativa.
             Na estipulação de Benhabib, isso significa a preminência gramática do contexto ético-comunicativo, intermediado como é pela linguagem uma vez que conversacional. Por exemplo, "a palavra 'eu' revela a estrutura singular da identidade do ego: toda pessoa que emprega esse conceito em relação a si mesma sabe que todos os demais indivíduos são do mesmo modo 'eus' ".
          Por outro lado, os agentes engajados nesse diálogo não podem ser pensados como termos vazios da predicação, mas, sim, estão envolvidos num contexto moral que inclui os pressupostos implícitos de gênero, tanto quanto aqueles fatores de sua situacionalidade. Mas podemos objetar que certas línguas nem mesmo permitem articular o limite entre o sujeito e a ação - a constância do gramatical não me parece inequivocamente assegurada como universalizável sem uma redução cultural considerável.
          A possibilidade da integração dos pontos de vista da justiça e do cuidado se liberaria, assim, conforme Benhabib, desde que se preserve a concretude do sujeito pensada como o resgate de sua Identidade - pois como identidade ele é equivalente aos outros igualmente idênticos a si mesmos, resultados de suas histórias e dados compreensivamente na sua situação. É assim que, uma vez o dialogismo sendo interpretado gramaticalmente, o relacional se torna conceituado como extensão de uma individualidade a um meio significado de fatores dados.
         O ato de comunicação é auto-referencial ao mesmo tempo que referencia todo ato de comunicação possível - subsumindo a alteridade como função da identidade. O que Benhabib procura evitar, a privatização da dimensão afetiva-situacional, estende-se, portanto, como aceitação do público como domínio único do político e do participativo, como do existencialmente relevante. A inclusão do gênero no cálculo da identidade impele Benhabib a propor a tirá-lo da esfera privada, tanto quanto a rejeitar soluções de grupos que se autonomizam, que inventam novos modos de vida, sem diretamente interpor o espaço oficialmente considerado como público. Assim, a teoria feminista invade o privado, por sua veleidade judicante, no ponto mesmo em que se reserva uma intenção de preservar a negociação política ao domínio público.
            Ora, a estipulação de Benhabib implica ainda que a esfera privada, especialmente no caso da domesticidade e consequentemente da feminilidade, está atravessada por mitos e símbolos, portanto, por determinações que formulam as expectativas de papéis na esfera pública. O indivíduo generalizado da projeção universalista kantiana é na verdade um indivíduo concreto, o homem branco, adulto e trabalhador, o ego masculino. Até aí, temos a mesma conclusão com Fraser, mas aqui para antepor-se à solução habbermasiana que, como se sabe, compacta a razão comunicativa com base nos mesmos pressupostos que orientam a gramaticalidade suposta implicada na pragmática dialógica.
             Frazer supõe que Habbbermas não atingiu "o pleno significado do modo como o Estado está ligado à esfera pública do discurso político", assim como tampouco "as interligações entre os quatro elementos dos seus dois esquemas público-privado", uma vez que ele, por exemplo, não conceitua "o modo como o papel do cidadão masculino-soldado-protetor vincula Estado e esfera pública" não apenas entre si, mas também "à família e ao trabalho remunerado". Vê-se bem o mais grave disso, ao estender as considerações de Habbermas sobre o feminismo e outros movimentos sociais que, desde o Welfare State e o que ele supôs como patologias sociais daí decorrentes, tem se interposto como novos contextos da problematização do poder.
               Para Habbermas, tais movimentos sociais apenas expressam a colonização do mundo da vida, isto é, conforme Frazer, "intrusão de mecanismos de interpretação sistêmica nas esferas da reprodução simbólica e consequente erosão e ressecamento de contextos de interpretação e comunicação".
               Frazer descreve minuciosamente o modelo sistêmico de Habbermas:  o relato habbermasiano, nitidamente funcionalista, se constituiu por uma focalização que não prevê de início quaisquer relações de poder envolvidas, mas somente as posições dos agentes assim como constituídas no objeto a descrever. Logo, haveria duas funções liberadas de certo modo pelo tipo de transformação que ocasionou a emergência da sociedade contemporânea.
              Se, previamente, designa-se um "arcabouço teórico-social" conforme Frazer, que estipula funções de reprodução material e de reprodução simbólica para todas as sociedades, na abrangência capitalista Habbermas supôs o trabalho social remunerado, como o conjunto de atividades e práticas arroláveis no primeiro caso; enquanto as atividades sem pagamento ou domésticas, atendem não àquela regulagem das trocas metabólicas dos membros da sociedade com o meio, mas sim à socialização, à manutenção de normas e padrões linguisticamente elaborados que constituem as identidades sociais, ou seja, estão somente no âmbito da reprodução simbólica.
           Essas duas funções, material e simbólica, compartem uma oposição como diferentes contextos de ação. No ambiente do dinheiro e poder, isto é, lá onde a função é preponderantemente de reprodução material, vigoram contextos da ação sistemicamente integrados, determinados por cálculos que maximizam a utilidade das atividades dos agentes que devem entrelaçar-se numa rede de consequências funcionais.
             Nos contextos de ação socialmente integrados, porém, esse entrelaçamento é viabilizado pelo consenso intersubjetivo, onde se supõe que estão sendo respeitados aqueles padrões de normas, crenças - e valores, nesse sentido do que se mantem esclarecido na comunicação como valendo apenas pela sua significação explicitável - objetivamente partilhados pelos agentes. Naturalmente os contextos de integração social seriam característicos de funções de reprodução simbólica, mas aqui ocorre uma subdivisão pela qual essas ações socialmente integradas podem ser "asseguradas normativamente" ou "conseguidas comunicativamente", conforme o consenso derive de padrões internalizados como pré-reflexivos e auto-justificados ou resulte de uma conversação suposta livre onde os agentes se interpelam e procuram estabelecer o que pretendem como eticamente legítimo.
             Ora, Habbermas não pode deixar de tematizar a modernização como, ao mesmo tempo, liberação de um sistema econômico e estatal específico, e a interpenetração desse sistema no que chama agora "o mundo da vida" que se vê assim estruturado conforme "ordens institucionais". Ocorre que para ele o mundo da vida se descreve como comportando duas esferas complementares, a pública e a privada.
             Na esfera pública temos o espaço da participação política, o confronto e a formação da opinião vinculando-se ao sistema administrativo estatal, enquanto que na privada atua a família nuclear restrita veiculada ao sistema econômico. Com isso veicula-se a descrição das ligações entre, por um lado, a família e a economia, na série de trocas que liberam mercadorias e força de trabalho, no âmbito de implementação do dinheiro. E, por outro lado, a esfera pública e o sistema estatal, onde as trocas se verificam entre a adesão às regras (pagamento de impostos, lealdade e obediência ao Estado) do que se chama aqui poder, e a organização do espaço social, a manutenção dos serviços públicos, etc.
           Em todo caso fica nítido que a família contemporânea, nuclear restrita, emerge numa relação constitutiva de suas características em interdependência com o surgimento da economia capitalista. Sua ligação com o âmbito do dinheiro se viabiliza pelos papéis do trabalhador e do consumidor, enquanto que o papel do cidadão é o que viabiliza a relação entre o público e o estatal. No entanto, me parece importante notar que essa ligação se mantém no plano dos papéis definidores da função econômica que destina a família como unidade do que poderíamos chamar a reprodução social.
          Creio desnecessário aqui estender o relato habbermasiano para a transformação conceituada no Welfare State, onde o cidadão se torna cliente, já que essa condição não se verifica na atualidade, até já pós-neoliberal. A critica do estado de bem estar social foi compactada, no entanto, pelos economistas neoliberais num parâmetro fascistizante do trabalho, onde neutraliza-se toda referência ao fato do capitalismo depender de uma reserva de desempregados, e onde o fator humano do componente de socialização é nulo: só se calcula o interesse do capitalista que como se sabe não pode seriamente suposto ser regido por qualquer regra que não a de obter lucro.
             Quanto a isso o que permanece relevante, a meu ver, é somente que Habbermas procurou estipular a tendência dos sistemas, econômico e estatal, ou seja, do dinheiro e do poder, "colonizar" o mundo da vida, deixando de haver uma simples inter-relação constitutiva como meios de troca, para se tornar uma questão da imposição das prerrogativas daqueles sistemas no que seria o âmbito dessse mundo da vida, o que originou novos modos de conflito, específicos daquela época, como por exemplo, o que ressaltaram os teóricos feministas: o assistencialismo tendeu a prover um papel social humilhante aos dependentes, o que atingia ainda mais as mulheres.
           Houve em geral, no diagnóstico de Habbermas, intensificação de ameaças aos papéis sociais estabelecidos, com inflação do papel do consumidor e objetificação do papel do trabalhador, entre outros fatores. Em todo caso, tratou-se de assinalar a irredutibilidade dos acontecimentos conflitivos nessa altura do capitalismo avançado, em relação à luta de classes típica do período da formação burguesa.
         

             Como poderíamos supor, como faz Habbermas, que os inúmeros problemas surgidos pela interpelação das subjetividades pelo poder e pelo capital, na era do marcketing e da arregimentação do trabalho feminino com fabricação expressa de estereótipos que o neutralizam enquanto feminino, seja subsumível a uma "crise na reprodução simbólica", em vez de algo em trânsito no que seria a reprodução material?
         Isso significa supor que a descolonização dessa esfera do mundo da vida, suposta independente de direito, viesse a se configurar como a solução política desejável. Mas novamente para Habbermas isso só significa a privatização do desejo, sendo que ele nem mesmo condena apenas a ala mais radical do feminismo que procurou configurar-se em grupos ou comunidades alternativas, mas preconiza como saneamento da participação política comunicativa na esfera pública, a anulação do que Frazer chama "o conteúdo substantivo que é fruto dessa luta, a saber, os novos significados sociais que damos a nossas necessidades e nossos corpos" , que a posição habbermasiana procuraria descartar como "lapsos particularísticos do universalismo".
          É nisso que me parece figurar-se o "iluminismo" habbermasiano, o que impeliu sua crítica à pós-modernidade. Mas os iluministas estavam interessados na exclusão dos privilégios, de casta ou eclesiásticos, do âmbito da esfera política e estatal, o que dentro do contexto da superação do antigo regime é compreensível.
          Habbermas generaliza indevidamente essa atitude ao pretender que todo movimento que pretenda antepor sua particularidade no âmbito político está reproduzindo as veleidades da nobreza ou do clero do século XVIII absolutista, isto é, contrafazendo a liberação do espaço público para a discussão do bem comum e do interesse geral, monopolizando-o indevidamente, sendo o contexto do trabalho que se mantém, apenas, como socialmente abrangente o suficiente para interpor o domínio da esfera pública. Particularmente no contexto da luta anti-colonização, justamente, Franz Fannon demonstrou que é impossível na margem separar as questões étnicas das questões políticas e econômicas.
         Conforme Frazer, se o diagnóstico das falhas da teorização de Habbermas comparte a inadequação geral da oposição categorial entre instituições sistêmicas e mundo da vida, isso impele a identificar o ponto fulcral do problema do ponto de vista dos teóricos feministas: trata-se da necessidade de situar numa mesma linha - a tratar como elemento veiculador dos esquemas opressivos das mulheres - tanto a ordenação doméstica no espaço particular quanto a formulação do trabalho no espaço público, do jeito que tem sido compactados numa mesma rede de pressupostos ideológicos.
           Se não se deseja uma teorização feminista programática e unilateral, ao menos algo em comum precisaria ser preservado: a concepção de que o limite dessa linha de opressão não está na definição do Estado capitalista, mas sim "no mal da dominância e da subordinação". Pois, como notou Frazer, não está garantido que somente a interposição de um socialismo do trabalho viesse a se manifestar como socialismo no sentido requerido pela interpelação do gênero, algo que não compacta a dominação sobre as mulheres.
No entanto, se bem que não ostensivamente preservando o dogma da generalização como pressuposto da dignificação interpessoal como no contexto de Benhabib, Frazer aceita ainda a luta feminista como tendo por objeto "identidades sociais e concepções de feminilidade" que deveriam poder ser definidas do ponto de vista das interessadas, não simplesmente advindas dos estereótipos fomentados pelos esquemas econômicos e estatais. Já em Young a contestação ao paradigma da comunicação se concentra num ponto mais preciso como contestação a essa mesma dinâmica identitária.
          Assim, o conceito do que é dialógico parece transferir-se de um modelo gramático-comunicacional para um contexto que considero mais backtiniano e autenticamente interativo. Pois não se segue que, porque existe uma interação em termos linguísticos e dialógicos, os agentes envolvidos tenham que ser abstraídos, da pluralidade situacional e existencial na qual se envolvem e se constituem, na linearidade do funcionamento do que seria "a" linguagem. Por outro lado, o que ocorre como dominação social não pode ser derivável de uma psicologia generalizáveldos sujeitos individuais. Mas quando se trata de pensar o sujeito ético, o importante é desfazer a concepção idealista ocidental pelo que ele só pensa ou só pode pensar generalizando de sua identidade a outrem. Inversamente, a mera definição da democracia implica que a decisão política e ética depende do sujeito poder pensar a alteridade, as situações que não são a sua, mas que com a sua formam o conjunto do que é dado adecisão ou meramente ao pensamento. A dominação ocorre se esse nível público do heterogêneo está reduzido a uma homogeneizade generalizante de apenas um dos fatores presentes.
             A linguagem vem a se constituir como o polo da problemática dessa pluralidade - se ela é pensável, então na linguagem o que existe não pode ser reduzido à função unitária do sujeito. Lembrando que Backtin nem mesmo considera a linguagem como universal, de modo que o que temos são gêneros discursivos como situações de interação linguística historicamente variáveis cujos funcionamentos não admitem uma formalização uniforme nem são metalinguisticamente esgotáveis, o que ele conceituou como dialogismo comparte a impossibilidade de limitar a consideração do que aí ocorre sem tematização de elementos translinguísticos. A pluralidade é o que habita a linguagem, e por dialogismo não temos a redução ao sujeito que se dirige a  um interlocutor, mas as variáveis de gênero e a polivocidade.
       Conforme Young, temos a crítica de mesmo teor vinculada por John Keane ao modelo conversacional de Habbermas: este ignora "aspectos especificamente físicos" da interação linguística como "gesto, expressão facial, tom de voz, ritmo", para abstrair um significado ideado transcendental.
         A   própria noção de significado aqui se torna problematizada, como na formulação de Dominick Lacapra, relatada por Young. Ele surge do relacionamento peculiar dos "pronunciamentos entre si", de modo que o significado é um "significado múltiplo" o que "todo movimento de significação exprime".
          Ora, a crítica que me parece mais necessária depende desses pontos como pressupostos do que contrafazem como sendo o que possivelmente manteria a projeção do sujeito genérico na base do horizonte conceitual da interação nos termos de comunicação ou intenção comunicativa. Isso na verdade permeia um círculo na argumentação que impede tratar o que impele a constatação de que o poder atravessa oposições muito apressadas como a de público e privado, se não se expressou a princípio o que é que transita em domínio público. Pois, enquanto se pensa a emergência do privado e a evitação de seu isolamento ou alienação em termos políticos como devendo compactar seu enfeixamento no público, torna-se inevitável que o movimento de fato semelhe apenas a reificação do que já está ocorrendo pelos imperativos do capital e do poder.
            Assim, confesso não compreender quando se erigem críticas ao particularismo das comunidades alternativas - quando elas são expressões sociais da vontade coletiva do grupo, sem que me pareça de qualquer modo estipulável a realidade de uma vontade coletiva que não seja localizada num grupo, algo que seria uma vontade do todo, legítima, isto é, não apenas a expressão de uma localização que se abate sobre a pluralidade social, a não ser como a convicção dos grupos de que a coexistência é o princípio da heterogeneidade. E quanto ao domínio público como o da lei, esse seria efetivamente o localizável, mas em que a estipulação de leis referentes a questões de gênero, ou de liberdade de culto, de expressão, etc., são menos públicas que leis referentes à propriedade privada e à regulamentação dos direitos dos trabalhadores? Nesse domínio o que se expressa não é nem pode ser a vontade de uma coletividade homogênea, e sim somente as soluções que viabilizam a convivência entre os vários e irredutivelmente heterogêneos grupos que formam uma sociedade, esta não sendo abstrata e sim uma circunscrição legalmente constituída, um país.
       É o mesmo quando se contrapõe a alienação da escritura ao real, como se a escritura, ela mesma, fosse algo diferente do real. Ao aceitar o princípio da coexistência não preciso pressupor a identidade naquele que não é esse nível público, nem projetar qualquer generalização. Inversamente, uma ética dos devires supõe apenas que não se interrompam os processos, desde que estes não estejam interrompendo a coexistência.
          Young antepõe que o modelo discursivo de Habbermas é idealista - no sentido platônico de relativo a um ideal projetado e fictício. Isso porque não há naquele modelo nem mesmo lugar para o que efetivamente trafega na interação linguística plural: o gracejo e a metáfora, a ironia e o duplo sentido, etc. "A comunicação assim pressupõe uma pureza de significados dos pronunciamentos ao separá-los dos seus aspectos expressivos e metafóricos", que seria extremamente indesejável do ponto de vista da recuperação desse plural intensivo que percorre a significância, o que Young antevê bem ao contrapor ao modelo de Habbermas aquele de Julia Kristeva. Entretanto, Kristeva tem uma teorização do feminino que é extensiva à psicanálise lacaniana.  Drucilla Cornell e Adam Thurschwell desenvolvem uma aproximação ao pensamento feminista de Kristeva a partir de uma análise do papel da negatividade nas teorias contemporâneas do sujeito          
           O propósito enunciado desse texto é mostrar que manter a premissa do inconsciente lacaniano não permite evitar o universalismo – algo indesejável para o feminismo, já que traduzido como negação da alteridade. Mas também que as tentativas de ultrapassagem desse confinamento através da negatividade, seja quando se tenta convergir essa estratégia com alguma remodelação do discurso freudo-lacaniano, como em Kristeva e Irigaray, seja quando se tenta manejá-la por si mesma, como em Adorno, são ambíguas. A conclusão de Cornell-Thurschwell é que a desconstrução do gênero, por onde a alteridade do feminino não se quer reapropriada por alguma categoria absoluta, não poderia pretender conduzir a algo exitoso senão preservando as noções de singular concreto, mas aqui retorna-se às limitações da "consciência" que se vêem na tentativa de preservar, remodelando, o paradigma da comunicação habbermasiano.
          Vemos que por vários e discordantes que sejam os encaminhamentos, num leque indo de Lacan a Habbermas, é sempre as duas questões da universalidade e da subjetividade que se projetam como importantes. Assim, paralelamente à aproximação de Kristeva por Thurschwell e Cornell, Benhabib examinou a controvérsia Kohlberg-Gilligan a propósito da teoria moral em Piaget. Em todo caso, trata-se de uma excentricidade que se institui paradoxalmente, pela marginalização em relação ao que seria universal, de modo que ora a psicanálise ora uma adaptação da teoria da moralidade são propostas como formas de contornar a marginalização imposta.  Começando com  Thurschwell e Cornell, para depois desenvolver a leitura de Benhabib a propósito da famosa polêmica que envolveu a teoria de Piaget, veremos que esses são bons exemplos das estações percorridas no trânsito histórico que veio a configurar no pós-modernismo literário, questões axiais.
   
        
          Cornell e Thurschwell  ilustram desenvolvimentos do que designaram  lógica da negatividade nos dois cenários da modernidade:  da contestação social de classes, com Marcuse, e do feminismo, com Kristeva e Luce Irigaray.
           O problema para esses pensadores críticos do status quo, no parâmetro da negatividade, é como reverter a condição de objeto do discurso social que a atribuição de si como Outro por uma dominação historicamente instituída lhe impingiu. Frente  à categoria de negatividade, surge a do desconhecimento em que não há o problema do objeto, há somente sujeitos. A posição de sujeito implica a objetificação, a coisificação dessa alteridade que em si não é função do objeto, mas do devir. Assim, a potência de variação da pessoa em devir, as histórias, experiências, multiplicidades, subjetivações, tudo isso se sobrepõe por um mecanismo de atribuição identitária de Subjetividade, que é função da História oficial no sentido da dominação em geral, e no sentido da hegemonia construída num certo tempo e lugar em particular.
           Entre os dois contextos, porém, temos um deslocamento nocional em relação à lei. No âmbito marxista, mais geralmente, na negatividade, a lei é universal da Razão. A alienação, a condição de outro, é função de um não acesso ao racional ou à lei, mas isso pode ser visto de dois modos: como na legitimação do Estado, em Hegel, ou como na deslegitimação da ideologia, em Marx. Nos dois casos trata-se do não-acesso como de uma condição de acesso: um não-ainda.
         O modo de produção capitalista, que depende da exploração do operariado, não pode se instituir sem ilusionar a representação do social como de um acordo entre os agentes e classes, mas na verdade o que ocorre são relações de força que implicam a alienação dos direitos dos trabalhadores. Assim, de fato, todo acordo verdadeiro seria subversivo da condição formadora do capitalismo definido como exploração dos trabalhadores, não fosse o fato de que só através das instituições integrantes da superestrutura é que algum acordo é socialmente mediado. Nesse ponto, a  negatividade operante da estrutura – alienação do outro do capital, do trabalhador; redução deste a objeto do discurso social – se torna apropriada como instrumento revolucionário.
          Trata-se agora de negar o caráter mediador do falso-acordo, negar a negação pela qual ele se institui. Mas o problema aqui é que essa negação parece correr como tendo que ser negação da alteridade por natureza. Seria  a economia clássica, ideologicamente cegante, que afirma a condição desigual no mundo do trabalho como apenas a natureza da produção, em vez de uma função perversa da cultura refletindo uma operação bem humanamente instituída como produção capitalista - exploração da desigualdade social, exploração do mal social por meio de dispositivios bem identificáveis, na ausência dos quais a sociedade organiza-se e supera suas condições adversas.
             Essa transformação ou apropriação da negatividade, Marcuse conceitua em termos de determinação. Conforme a citação de Cornell-Thurschwell, ele afirma que “a negação é determinada se ela atribui o estado de coisas estabelecido aos fatores e forças básicas que contribuem para sua destrutividade, assim como para as possíveis alternativas além do status quo”. O artigo citado atribui, como objetivo de Marcuse nessa oportunidade, descartar a “falsa e excêntrica” oposição para utilizar a “verdadeira negatividade”, que seria “aquele elemento da sociedade que pudesse desempenhar o papel do autenticamente negativo.” O significado de excêntrico aqui, no entanto, é obscuro, pois seu oposto seria igualmente redutor. Em todo caso, o que a ideologia opera, portanto, é a impossibilitação do conhecimento da sua própria negatividade operante, negatividade a ser negada  pelo elemento revolucionário que vira o feitiço contra o feiticeiro, como na conhecida estória. 
         O que deveríamos notar quanto ao papel do conhecimento da negatividade (falsidade) do discurso de legitimação do status quo, é sim que ele opera uma excentricidade como consciência da marginalização de que se é objeto.  Esse conhecimento, se atingido, é imediatamente transgressivo. A condição de transgressão não é superficial – uma revolta do “sujeito”. É a quebra do mentiroso contrato social que na verdade não passa de uma disfunção no processo da intersubjetividade, pelo que, veladamente, os sujeitos se põem de acordo sobre a atribuição do outro como objeto (negação), de modo tal que o ser assim atribuído implica uma clivagem da Razão: o ser humano que não pode deixar de ser sujeito, não pode deixar de se atribuir como objeto, pois do contrário rompe com a sua condição mesma de sujeito, e assim ao infinito. Inversamente a Marcuse, o confronto da marginalização subsume a aporia da identidade, não a imediata aprorpiação desta.
             Essa aporia, Kristeva tematiza do ponto de vista da alteridade do feminino. Tudo corre do mesmo modo como constatação da negatividade da condição própria e descoberta de que essa negatividade decorre no reverso do discurso que legitimiza socialmente o situamento do outro como negatividade de sua condição. Logo, necessidade de negar a negação, de uma negatividade autêntica que não pode deixar de ser transgressiva do discurso. Mas a transgressão assumida apenas como revolta do sujeito é uma negatividade que não tem valor de Negação autêntica, porque implica na assunção da quebra do nexo societário intersubjetivo, quando a estratégia autêntica da negação, para ser reafirmadora do que é autêntico na Lei, a Razão, precisa ter um alcance político, isto é, ser ao mesmo tempo construtora de um liame intersubjetivo válido, devolvendo a subjetividade ao sujeito objetivado.
           Ora, interessa aqui notar como ela descreve essa revolta. Se há muitas mulheres nos grupos terroristas, é porque elas encontram aí um escoamento da sua revolta contra o papel social de gênero. Mas, na citação de Cornell-Thurschwell, conforme Kristeva, “a recusa da ordem social expõe a pessoa ao risco de que a chamada boa substância, um vez libertada, explodirá, irreprimida, sem lei ou direito, para converter-se em arbitrariedade absoluta.
            Ou seja, se a alienação é objetificação,  toda objetificação é alienante: por exemplo, quando alguém, na completa indiferença à questão social, supõe que seu conhecimento do mundo lhe vem do caráter fático do conteúdo intra-mundano, não sendo algo que implica o envolvimento do sujeito, isso é coisificação – nos termos de Hegel, algo que implica na crença do “indivíduo”, um ser de sentido pré-social, quando essa condição é o caráter negativo da constituição do Selbst, o momento a ser autenticamente negado na constituição da consciência de si. Logo, deduz Kristeva, a revolta se converte numa armadilha, porque o sujeito que foi objetificado acredita, portanto, numa substância de si separada do nexo intersubjetivo que ele quebrou pela revolta, ou seja,  inadvertidamente (re)objetifica-se.
         No entanto, a Negatividade que deve ser utilmente operada – desconstrução do discurso objetivador de si, reconstrução do nexo intersubjetivo livre do constrangimento desse discurso – só se disponibiliza porque há uma positividade na condição atribuída por outrem como negativa a esse ser que foi objetificado.
Cornell- Thurschwell ironizam um pouco essa instância. As retóricas da negatividade não podem deixar de manter uma premissa de positividade. Kristeva escreve bastante sobre o que é essa negação da mulher, naquilo em que ela pode ter sido atribuída como o Outro do sujeito referencial masculino, e aqui ela encontra Lacan para quem, conforme o artigo citado, a mulher literalmente não tem estatuto de existência, senão, de novo como uma impossibilidade, a mãe arcaica, isto é, a mãe fálica.
            Conforme Cornel e Thurschwell, a  aporia de Kristeva seria que, mantendo-se na imanência desse inconsciente lacaniano, ela pretendeu ter revertido o seu pressuposto, ao transformar a negatividade num instrumento útil à contestação do falocratismo. A mulher não seria aprisionável numa camisa de força identitária, ela conservar-se-ia no negativo definido agora como a fluência do que ela pode ser. Seria até melhor falar do “feminino” ou "feminizante",  ao invés da “mulher”.
            Já Gayle Rubin reverte Lacan mantendo-se ainda mais próxima dele. Se o inconsciente é masculino, é porque “gênero é uma divisão dos sexos imposta socialmente”, e sendo assim, homens e mulheres não são fundamentalmente (por natureza) diferentes, estando livres para constituir suas relações como quiserem, preservando-se essa observação pela qual, ao menos, “estão mais juntos um do outro do que qualquer outra coisa – por exemplo, montanhas, cangurus, ou palmas de coqueiros”.
           Ora, eis aí, nessa “rígida” anteposição de gêneros, “uma ofuscação ideológica”, conforme Cornell- Thurschwell, mas para eles, isso só implica na necessidade de desfazer a separação que o inconsciente lacaniano interpõe entre o Real e o Simbólico. Os gêneros não são nem totalmente uma coisa, nem totalmente outra, natureza ou cultura. Não seria possível armar a negatividade de forma útil para a reversão do paradigma da dominação, mantendo-se na premissa universalista desse inconsciente. Mas já notamos que isso não implica que Cornell- Thurschwell tenham efetivamente transitado da retórica da negatividade para a do desconhecimento - onde o sujeito não poderia de forma alguma tornar-se objeto da atribuição do saber. Pensam, inversamente, que a situação vivida é suficiente, apenas sendo afirmada nas categorias que ela mesma suscita em vez de se deixar permear pelas categorias universais, para reverter a ideologia.
           As críticas que já foram feitas a esse apelo do vivido como suficiente à teoria me parece válida, contudo. Pois, o que está em questão conceitualmente é mesmo o vivido, e se fosse para se manter na imediatez então não seria o caso da teoria. O problema interposto pelo inconsciente freudo-lacaniano é mais sério, resumindo toda a aporia da metafísica ocidental: como, mantendo a premissa da lógica (evidência absoluta) da atribuição (a é b), poderíamos pensar fora da unidade absoluta do sujeito atribuído? Qualquer enunciado nosso pressupõe que estamos pensando essa unidade. Logo, pensamos objetivamente, o sujeito tem que ser objetivado, etc.
           O inconsciente freudo-lacaniano é mais uma teoria que conta com isso, que preserva a lógica ocidental. O sujeito (psíquico, pulsional, etc.), não é um intelecto puro, o inconsciente fantasia o signo, mas ele tem que constituir desde a infância até a maturidade intelectual por volta da adolescência, a capacidade de exercer esse intelecto puro. Como explicar essa dualidade no interior do ser humano? A teoria psicanalítica descreve então o processo pelo qual ao longo da infância a fantasia vai sendo empurrada para o inconsciente, e a consciência vai se formando e estabilizando como o lugar da palavra comunicativa e atribuidora. No entanto, isso só pode ocorrer porque a fantasia inconsciente é a da igualdade absoluta entre a e b. A objetivação mais incontestável de qualquer sujeito. Se nós não quiséssemos com todo nosso ser a identidade, nós jamais formaríamos uma consciência identitária que Freud e Lacan definem como únicos requisitos da produção do saber científico e mundano - sem isso, o sujeito seria incapaz de manter-se num mundo fenomênico.
        Mas o que precisamos notar é que por mais evidente que pareça, a lógica aristotélica na verdade impediu historicamente a ciência empírica, que só emerge quando ocorre a ruptura com as suas premissas epistêmicas, desde Galileu. O que ocorre na verdade é que da forma linguística da atribuição, Aristóteles pressupôs uma natureza atributiva dos seres, das coisas na realidade: além da linguagem mas ao mesmo tempo só predicável na linguagem. Essa questão dos universais - se Aristóteles pensou o universal como ser, nome ou ideia - na verdade não desloca o pressuposto, porque seja qual for o escolhido entre esses três, será o que permitirá negar realidade ao devir, será o que subsumirá toda a realidade em si.
           Os sofistas haviam colocado o problema da forma linguística como aquilo que justamente não pode ir além de si mesma - ela não é um universal, mas uma atribuição pura, localizada no que atribui, e no entanto nós a estendemos numa generalidade da experiência que com frequência nos induz às maiores ilusões, não ao conhecimento, que geralmente para ser atingido necessita de uma ruptura com essa ilusão que projetamos nas formas de linguagem - Nietzsche especialmente se concentrou nesse modo de ilusão pelo que uma palavra é apenas uma seleção arbitrária de uma das facetas aparentes da coisa, selecionada para atribuição simbólica dela, que desde aí os crédulos passam a ver como a coisa mesma, a natureza ou essência objetiva da coisa. Assim, contrariamente ao modo como a metafísica colocou a questão da identidade, o problema da linguagem é que, justamente, não há evidência alguma do termo sujeito fora da atribuição. Ainda assim construímos conhecimentos que supomos verdadeiros acerca de objetos e experiências vividas. Esses conhecimentos não podem obter, porém, qualquer validação fora da linguagem.
          A isso a metafísica sempre responde com algum tipo de zombaria - apelando para a evidência: se colocarmos a mão no fogo é sempre o mesmo efeito que se obterá. Mas ela começou por ser uma validação de como sabemos disso. Ela mesma não é o efeito de queimar. O que estamos querendo obter, ou então devemos renunciar a isso por constatar não ser exequível, é o conhecimento do nosso conhecimento. O fogo queima em si, ou queima apenas o que é queimável - não algum material à prova de fogo? Nada obtemos a propósito de que é o fogo apenas por saber que ele queima algumas substâncias, mas não outras - e sabemos disso, sabemos que não sabemos.
            Mais geralmente, a ciência pode nos fornecer uma explicação do que ocorre quando o fogo queima, mas quanto ao que ele é ela só pode nos dizer dentro dos parâmetros de construção da sua linguagem. Não há um conhecimento absoluto, e ao mesmo tempo demonstrável como tal, de todos os conhecimentos possíveis. Mas todas as teorias que aceitam a objetividade lógica como fundamento indeslocável do pensar acreditam na falácia de que há. Com isso elas põe na exterioridade do racional humano, não só os cautos que compreendem a relatividade da linguagem, como as culturas não-ocidentais que contam com essa impossibilidade.
          Entre Freud e Lacan, contudo, há um trânsito espistemológico e político da psicanálise - o que fez Lacan ser expulso da sociedade psicanalítica e iniciar sua linha independente. O que Lacan pretende é, uma vez acreditando que a identidade ou a coerção ocidental da identidade, é algo que pertence à natureza do desejo, constituir estratégias para atingir esse impossível que é a consciência da alteridade. Mas tão louvável isso seja no plano das intenções, o problema é que na exterioridade da metafísica ocidental isso se atinge sem necessidade de supor que se trata de algo contra a natureza.
         Apenas devemos observar que teoricamente nós não superamos a psicanálise mantendo a explicação apenas no domínio da consciência, pois o que a psicanálise "explica", bem ou mal, é aquilo cujo mérito foi ter se mostrado necessário, ou ter concordado ser preciso, explicar: porque nós queremos a verdade, o que há com nossa vontade de saber?
        Mas a psicanálise como uma teoria do inconsciente (desejo) partiu do pressuposto dessa vontade como universal - não como variável. Ela contou com a possibilidade apenas entre zero e um, entre haver ou não haver a vontade de saber (objetividade), para responder que obviamente todo humano tem essa vontade, ainda que nem todo atinja o seu cumprimento na forma da objetividade ocidental. Mas o saber e a vontade de saber não é uma questão apenas de tudo ou nada, e sim, cultural. Isso o saber ocidental paradoxalmente, como já assinalei, pode cada vez menos deixar de confrontar pelo avanço das ciências humanas transitando para as retóricas da otherness que presentemente as habitam como suas linguagens teóricas.
        A convergência dos textos de teórico-feministas que examinamos a propósito de Habbermas se deve a que ele ilustra a aporia do ocidente enquanto teoria política que recusa o feminismo como nível de luta política, com isso colocando para as feministas e em geral ao ex-cêntrico, o problema duplo da identidade e do split público-privado. A teoria feminista enquanto algo articulável a uma prática política, pode e/ou deve transitar na exterioridade dessas categorias?
           Entre avançar sobre a teoria do inconsciente ou manter o discurso da consciência, a questão atinge o estatuto do ego que a teoria feminista deve reconstruir num diálogo inevitável com as teorias já existentes. Então para alguns pareceu suficiente o dilema entre apresentar novos conceitos, ou remodelar os já existentes convenientemente ao nossos propósitos. A meu ver, desde parâmetros como os de Flex e numa conjuntura mais atual, em vez de manter a questão nos limites da positividade/negatividade trata-se de explorar as contradições ou limites discursivos da construção do gênero na linguagem – por exemplo, na queer theory de Judith Butler. Assim o dilema é contornado, mas não de um ponto de vista dogmático.
         Na opção de manter o discurso da consciência como suficiente para um situamento útil do ego à teoria feminista, essa superação do dilema não se disponibiliza. Podemos observar isso com Benhabib. Aí a linguagem é o meio da consciência comunicativa. Todo o nível político em que a linguagem se constroi não pode ser tematizado, é abstraído pela idealização da linguagem como instrumento da clareza ou fala imediata do vivido.
       

            O trajeto da argumentação de Benhabib a propósito de como a teoria feminista pode contribuir em filosofia moral, é um tanto curioso. Como já se pode observar pelo subtítulo, o movimento do conceito ancora-se na controvérsia Kohlberg-Gilligan, de modo que esperaríamos uma tomada de posição entre ambos, apoiada por categorias construídas pela teoria feminista.
          Não é que ela não tome posição contra as premissas que Kohlberg sustentou ao defender-se dos resultados apresentados por Gilligan, uma vez que ele apenas reafirmou seu parâmetro anterior, não aceitando esses resultados como pertinentes para uma mudança de posição - a meu ver, aliás, acertadamente, pois de fato como ele antepôs, Carol Gilligan supôs estar se mantendo no limite da teoria moral piagetiana apenas modulando-a convenientemente, mas na verdade avançou a uma teoria do ego feminino, que é o que me parece justamente ser preciso evitar, e em todo caso é o que sem dúvida extrapola a fronteira da teorização de Piaget.
           A  tomada de posição de Benhabib não ocorre para explicitamente nomear como válidas as categorias de Gilligan, e sim para instituir o conceito habbermasiano de subjetividade concreta, como algo de que a seu ver também Kohlberg precisaria para que o seu arcabouço conceitual pudesse se livrar da suposta incoerência que o limita.
        Benhabib, ao transitar do cenário da controvérsia para expor seu próprio argumento, não o defende nos termos de Gilligan, mas explicitamente se considera “seguindo Habbermas”. Isso, tanto quando se trata de expor o que ela considera a limitação do modelo de Kohlberg, quanto, depois, para propor o que seria o remédio adequado. No primeiro termo desse movimento complexo, Benhabib está virtualmente apoiando Gilligan, mas no segundo, não. A meu ver, porém, Benhabib e Gilligan se movimentam num mesmo pressuposto irrefletido da linguagem.
           O artigo de Benhabib se completa definindo o empreendimento de Gilligan como algo que dependeu dos fatores empíricos em que Benhabib se apoia para aplicar a ética da comunicação e a categoria de sujeito concreto habbermasianas, ou seja, dados que mostraram que um número significativo de mulheres não julgam do modo projetado como ideal pelas categorias da moralidade ocidental. Mas implicitamente ela supõe que os resultados de Gilligan não fornecem a explicação do que os liga àqueles fatores, o porque das vozes das mulheres terem sido “silenciadas” quando se tratou de projetar o ideal, e a relação disso com o fato de que os ideais de autonomia, transitando na cultura, se tornaram a elas estranhos.
          Benhabib objetiva resgatar para as mulheres esse parâmetro moral de autonomia, por meio de uma reconceituação do ego tal que homens e mulheres possam descobrir sua efetividade operante na moralidade, portanto sem  precisar abstrair sua efetividade devido a uma concepção meramente formalista da consciência moral. Para Gilligan esses ideiais de autonomia não são objetiváveis para as mulheres  a princípio por que seus processos de pensamento são diferentes dos homens, são processos coletivizados e situados. Mas desenvolvendo esse raciocínio, ela sugere que teríamos nas mulheres processos de pensamento mais autenticamente humanos que aqueles supostos pelo mundo organizado pelos homens.
         Com Gilligan, portanto, a teoria feminista envereda para uma redução do pensamento como processo narrativo, contextualizante - ou seja, as mulheres seriam esteretipicamente menos engenheiras que contadoras de estórias, todo literário se torna narrativo, etc. Como é que isso não seria um limite cognitivo, mas inversamente um a mais de capacidades é que confesso não compreender de forma alguma. Já a sugestão de Kohlberg de que variações sistemáticas de padrões de juízo moral são estudados atualmente como problemática da irredutibilidade cultural e das variações de educação, está inteiramente de acordo com o cenário da psicologia descrito em Butcher ("A ingeligência humana").
        O que devemos notar  é que  o pós-modernismo literário num situamento precisamente inverso a esses,  como se vê na resenha de Hutcheon, utiliza essa mesma premissa de que o ego objetivado pelo discurso ocidental não corresponde à realidade em devir dos sujeitos, mas para situar a construção desse discurso justamente na linguagem da comunicação e/ou ilusão narrativa. Por outro lado, essa realidade em devir nós só podemos pensar na problematização da linguagem. E isso justamente porque o pós-modernismo literário solveu a condição de universalidade literária, onde o referente era sempre o sujeito da narrativa ocidental, porque estendeu a literatura à expressão do ex-cêntrico e entre eles, destacadamente, ao feminino. As retóricas da othernesse estão paralelas, assim, ao que etá em trânsito na produção do texto em literatura.
         Não podemos contar com um dogma para substituir outro, quanto ao "sujeito". Então, desnarrativizar o literário é o que corresponde ao pós-modernismo das operações de desmontagem do discurso narrativo-comunicativo e de investimento nas variações estruturais em que esse discurso é construído, a fim de localizar as brechas dos seus valores de modo a poder produzir outros parâmetros de texto e linguagem:  interpolação de trechos e reescritura, criação de categorias infixadas de interlocução, complicação de gêneros discursivos, ou seja, permanente questionamento do "eu" que vai sendo aparentemente construído como sujeito de uma estória porquanto esse texto é sempre intertexto, o eu é sempre interlocução do outro - a estória é a ilusão do sentido, a ilusão do transcendental independente da materialidade do signo (intertexto, retórica).    
         A sugestão de Hutcheon pelo que todos esses processos podem ser interpretados como paródicos de uma subjetividade que se desejaria reconstituir me parece prematura. A proliferação dos recursos impede que se totalize o pós-modernismo nesse nível do que seriam as suas soluções, e torna mais pertinente localizá-lo como tendo substituído a "revolução" permanente pela variação contínua das suas problemáticas.
        

              Na controvérsia de Gilligan e Kholberg,  a área de interesse foi  o julgamento moral e o desenvolvimento da consciência moral. Kohlberg apoia-se em Piaget para continuar a pesquisa da moralidade numa base construtivista, isto é, admitindo estruturas mentais a serem desenvolvidas conforme uma interação prática com o mundo, e uma escala etária de acumulação de experiências.
          O trabalho de Piaget significativo nesse campo é O julgamento moral na criança (publicado em 1932, no Brasil em 1977). Aí as fases do desenvolvimento moral recobrem a de operações concretas e de operações formais do desenvolvimento cognitivo como, respectivamente, fases de moral heterônoma infantil(“realismo moral”, sistema regras-autoridade transcendente) e autônoma adulta (sistema cooperação-autoridade legisladora). A distorção do julgamento moral na fase heterônoma conduz a resultados grotescos, que só se tornam jocosos por que essa fase é tipificada na infância. Quando recalques impedem que se atinja a moral autônoma, esses resultados grotescos tornam-se obviamente indesejáveis no trato social do adulto.
        Algo importante a notar em Piaget, é que a presença da moralidade, mesmo concreta, depende da formação de um “eu” que se auto-compreende não somente por oposição a um “tu”, mas sim a uma coletividade, uma sociedade. A maturidade da moral autônoma vai depender não dessa oposição ser deslocada, e sim nuançada e complexificada, de modo que o “eu” (particular) não é apenas o contrário da sociedade (universal), mas é um membro da sociedade, enquanto esta só existe em função de “eus” que nela interagem.
        Ou seja, há maturidade moral quando o eu se transforma de um seguidor de regras já feitas, para um legislador que compreende o móvel do prescrito como dever no interesse interpessoal (heterogeneidade de sujeitos) da coexistência, interesse que o inclui (sociedade) enquanto eu (sujeito moral/necessariamente em coexistência com outros).
        Entre Kohlberg e Piaget, porém, conforme Helmuth Krüger (Introdução à psicologia social), um estudo apontou doze aspectos congruentes, mais quatro contraditórios, havendo ainda um aspecto, entre os congruentes, que na verdade é algo polêmico.
        Não seria preciso discriminar aqui os elementos comuns, uma vez que todos entram na caracterização que já apontei, ou seja, na manutenção da perspectiva construtivista. O essencial é que o julgamento moral maduro subentende a reversibilidade. Esse é o aspecto epistemológico axial da teoria moral de Piaget: todo juízo moral deve ser redutível a uma atribuição objetiva, o dever  intelectualmente redutível ao ser (a é b).  Assim, a teoria moral está amparada não numa teoria do ego, somente numa teoria da inteligência (conhecimento objetivo). Ora, entre as operações da inteligência, a reversibilidade é o critério piagetiano que acompanha todo limiar de maturação do intelecto: quando compreendemos que se a é b, algum b é a. Em ética, a moral torna-se autônoma quando compreendemos que se podemos agir de certo modo com relação a outrem, esse outrem pode também agir desse modo em relação a nós.
          Quanto ao aspectos pelos quais Kohlberg nitidamente se afasta de Piaget, Krüger destaca a precedência do pensamento à ação, e a ênfase em experiências familiares e sociais, que Piaget tende a homogeneizar. Em geral, a linha de Kohlberg é tracejada mais nesse sentido do localizado e específico da experiência, de modo que o aspecto que nele é mais polêmico que em Piaget se relaciona ao estatuto transcultural dos estágios. Em Kohlberg as variáveis de nacionalidade, ocupação e educação são assim importantes, inversamente a Piaget.
            No esquema de Kohlberg apresentado entre os anos cinquenta e sessenta,  conforme Krieger, os estágios do desenvolvimento moral recobrem três níveis e seis estágios, dois para cada nível. Os níveis sendo pré-convencional, convencional e pós-convencional, os estágios seriam: 1) punição e obediência; 2) realismo instrumental; 3) orientação conforme expectativas de outros; 4) lei e ordem; 5) contrato social e direito; 6) ética universal. Colocando-se numa perspectiva não psicanalítica, Kohlberg aceita que pode ocorrer desenvolvimento entre estágios mesmo após a adolescência e em idades avançadas.
           A nossos propósitos interessa alguns dos resultados estatísticos alcançados pela aplicação do esquema de Kohlberg nos EUA, levantados por Krieger: estágios mais avançados são usualmente encontrados nas classes sociais superiores, grupos culturalmente fechados e sociedades centradas na família. Já o fulcral da controvérsia que vimos ventilada em Benhabib, é que expressiva quantidade de mulheres geralmente tendem a permanecer no estágio 3.
          Os testes baseados em Kohlberg, no texto de Krieger, permitiram ainda relacionar estágios médios alcançados numa mostra populacional representativa, a diferenças de nacionalidade, como também o fato de que alcançar estágios superiores não impede retrocessos, transitórios ou não, aos inferiores. Podemos notar a quantidade de áreas de interesse afetadas pela problemática em questão, desde o direito às ciências sociais, como também a educação, psicologia e filosofia.
           No texto de Benhabib, mostra-se que Gilligan não começou por atacar o resultado cedido pela aplicação de Kohlberg no que tange à inferioridade do estrato representativo feminino com respeito ao julgamento moral, para assim questionar seus critérios. Mas desde já devemos notar que esse resultado significa que as mulheres geralmente não são suscetíveis de separar emoção e razão, que são mais dependentes do julgamento alheio por que conferem maior importância à afetividade nas relações interpessoais.
            Ela interpela outrossim, juntamente com Murphy, num artigo de inícios da década de oitenta (Desenvolvimento moral no limiar da adolescência e Idade adulta: crítica e reconstrução da teoria de Kohlberg), a proposição de Kohlberg que foi apoiada por resultados de testes, de que há percentual significativo de pessoas que parecem retroceder da idade adulta à adolescência, no que tange às performances de juízos de moralidade.
           Assim Murphy e Gilligan, procedendo conforme a previsão epistemológica de  Kuhn. Ambos propõem isso como uma anomalia, e então, ainda conforme as duas possibilidades que Kuhn aceita nesse caso, não seguem a reversão de paradigma, mas tentam ampliar a teoria.
            Ora, o que sugerem é um estágio ainda mais avançado que o sexto (ética universal) que seria igualmente pós-convencional, mas não como um formalismo e sim como uma contextualidade. Isso contempla também o resultado insatisfatório das mulheres, porque poderia ser que elas não estivessem apenas dependendo das expectativas alheias para formular soluções às questões do teste conforme apresentadas, mas procedendo em relação a elas conforme critérios de contextualização.
           Assim, a ampliação atingiria o próprio cerne do conceito de maturidade conforme basicamente disponibilizado por Piaget. Se termos como narratividade, contexto e especificidade forem incluídos como habilidades requeridas a uma definição de maturidade, então todo o critério explicativo piagetiano precisaria ser revisto, sem que isso significasse alterar a sua premissa metodológica construtivista.
           Maturidade moral, conforme Murphy-Gilligan, deveria ter a ver com uma visão que “encara o eu como imerso numa rede de relacionamentos com os outros”, na expressão de Benhabib, não apenas seria definível como uma capacidade de abstrair as pessoas concretas para supor que são entidades envolvidas numa relação reversível pela qual se A deve agir de certo modo com B é somente porque na mesma situação B deve agir do mesmo modo com A.
        Pois, na argumentação de Benhabib,  pode ser o caso em que a situação ela mesma não admita reversibilidade, como entre mãe e criança.. Esse é o ponto mais fraco na argumentação, a  meu ver.  
            Conheço uma professora de inglês, nivel universitário, que em sala de aula mostrou-se incapaz de compreender o conceito foucaultiano de "dominação" - que é um conceito sócio-político - porque sendo mãe, ela pensava que o direito a "dominar" os filhos é naturalmente atribuível, como se o governo fosse alguma espécie de pai ou mãe, e a população fosse criança. Essa professora não tem capacidade de interlocução à teoria política, está limitada ao que ocorre em nível imediatamente pessoal. Assim, ela argumentou seriamente que se eu tenho filhos, então eu domino; logo, seria contraditório que eu criticasse a "dominação".
               Ocorre que, até ignorando o fato óbvio de que a autoridade política não pode ser definida pelas relações de paternidade ou maternidade,  na nossa sociedade não há parâmetro ontológica da autoridade qualquer. A mãe pode punir a criança, enquanto a criança não pode fazer o mesmo com a mãe, mas a mãe não está justificada na moralidade social pela punição em si. Ela espera que a criança aprenda o que é preciso para crescer, quando então a criança reverte/recompensa a obrigação da mãe em cuidá-la pela sua independência na vida. Se há  um problema na teoria da Piaget não é esse, mas sim, inversamente, a centralidade da nossa sociedade pressuposta no contexto piagetiano como tendo alcançado na prática o que a moralidade como reversibilidade é universalmente.
           Supondo uma sociedade em que a mãe realmente tivesse direitos irreversíveis sobre a criança, podendo sacrificá-la por exemplo, essa sociedade não permitiria que os seus membros alcançassem maturidade moral, na teoria de Piaget. Logo, seria também definível que os membros dessa sociedade não tem a inteligência tão desenvolvida como o ocidental - sendo esse o ponto importante quanto aos testes de inteligência, pois há discrepâncias regulares quando se trata de crianças não-ocidentais ou não-brancas.
           Eagleton enfatizou isso como o problema de toda teoria da moralidade, contra a perspectiva pós-moderna de que a irredutibilidade cultural não pode admitir a centralidade ou universalidade do liberalismo ocidental.
           Conforme seu exemplo, se o governo inglês na Índia proibiu as punições extremamente cruéis dos costumes orientais,  podemos deplorar as condições de colonização, mas não podemos deixar de ver na opinião de Eagleton, que essa proibição é a moralidade em si, não apenas uma perspectiva interessada do ocidental. E que se nós estamos interessados na destruição de todas as condições de opressão das mulheres, então essa é a moralidade exercida por nós como máxima de que a opressão de quem quer que seja é condenável em si (universalmente). Assim, Eagleton considera isso o bastante para refutar a irredutibilidade cultural em termos de algo inserível nas lutas políticas.Ele é especialmente hostil ao pós-modernismo estético e teórico.
             Mas podemos considerar esse encaminhamento um tanto simplista - pois não sabemos justamente o móvel da proibição governamental inglesa. Ele proibiria alguma prática num contexto que não lhe interessasse absolutamente explorar e controlar?
               Esse exemplo da colonização é bem a propósito, pois entre os moralistas e teórico-políticos ingleses do século XIX, como notou o professor Friedrich (" Uma introdução à teoria política”),
o conhecimento das práticas dos colonizadores britânicos no oriente foi bastante para desencadear uma transformação profunda na sua concepção de poder, de algo inerente à civilidade a algo que, nas palavras de  James Mill, "tende a ser abusado", ou já  na frase famosa de Lorde Acton, como o “poder absoluto que corrompe absolutamente”.
            A natureza humana se tornou nesse contexto, aquilo que é variamente solicitado conforme a circunstância, e uma das circunstâncias mais propensas a tornar essa natureza despótica é o poder - sendo que, por outro lado, a colonização é uma situação de tal modo naturalmente atritubitiva do poder que não se poderia julgar do mesmo modo a moralidade de um gentleman que permanece na Inglaterra e um inglês mandado à colônia como administrador.
      Assim, segundo James Mill, na citação de Friedrich,  os “compatriotas colocados em circunstâncias menos desfavoráveis, a saber, permanecendo na pátria e não se expondo a essas tentações do poder”, permanecem aqueles modelos  de "gentleman inglês" que "pode ser tomado como um espécime por excelência de civilização, de cultura, de sensibilidade, de todas as qualidades, em suma, que fazem a natureza humana estimável", enquanto os que são mandados às colônias costumam "não somente a privar da propriedade seus escravos e tornar objeto de propriedade criaturas humanas como eles, mas, igualmente a tratá-las com um grau de crueldade” impressionante aos observadores.
        O problema da moralidade integra o elenco de questões filosóficas mais gerais concernentes a se podemos ou não postular uma universalidade da mentalidade humana. Mas quando se trata de transitar à linguagem toda mediação teórica e prática, o problema se torna aquele que vimos ser decisivo quanto ao julgamento da psicanálise.
            Como se constitui o signo na alteridade de sua materialidade em relação ao ser de valores que nele se produz como sujeito falante? Há algo nessa constituição que implique demonstração ontológica da moralidade? Como podemos politicamente negociar nossas expectativas de valores? Mas todo esse lote de questões essenciais transita num nível que não é o bastante para enunciar as questões constitutivas da teoria política que são relativas à liberdade e sua conceituação.
      É possível que essa negociação política de nossas expectativas não dependa de alguma decisão sobre nossa natureza, e sim do desprendimento da generalização do indivíduo na cultura, e exclusiva anteposição do nível público em termos daquele em que os problemas são somente relativos à legislação da coexistência dos integrantes heterogêneos de uma população.
        Por outro lado, não está demonstrado a priori o que os testes medem - se aquilo que as pessoas realmente fazem ou fariam, ou o seu conhecimento a propósito do que deveria ser feito conforme seu acesso a códigos culturais que por sua vez podem ou não estar sendo verificáveis na prática histórica. Como vimos, a distância entre o que o discurso capitalista afirma como direito, e a prática da exploração de classe, permanece não transposta. Mas isso a meu ver não serve de argumento para tachar de idealismo ou fantasia, a afirmação da vontade política de se efetivar a realidade da sociedade boa, em que o nível público solveu todo trânsito de poder/dominação, para conservar apenas a abrangência das leis que sendo do conhecimento de todos, refletem as soluções da coexistência da heterogeneidade populacional, leis que estão sempre se ajustando às mudanças sociais e ao presente da sociedade, ou seja, não há sentido na denegação a priori da democracia apenas porque existe o seu contrário. Quanto a isso, mesmo Derrida não foi muito claro na sua crítica politica apresentada no seu "espectros de Marx".

       

          Conforme Benhabib, para Gilligan e Murphy avaliar a contextualidade seria a habilidade pela qual inicialmente julgamos a reversibilidade como variável da situação, não o oposto, a situação como variável do parâmetro universal-formal da reversibilidade. O que relativiza a reversibilidade, porém, em vez de suprimi-la, já que não se propõe obviamente um endurecimento “concreto” no sentido da regra. Seria essa avaliação contextualizante que as mulheres usualmente operam nos testes, enquanto a previsão das respostas mantém apenas o critério universal do reversível. Elas avaliariam a situação mesma, não apenas as opções oferecidas, como se a situação estivesse fora do âmbito do julgamento.
          A resposta de Kohlberg a Murphy e Gilligan, alguns anos depois da publicação do artigo destes, mas ainda nos anos oitenta, foi como já assinalei, que a ampliação proposta não contempla o interesse da teoria estritamente moral, mas sim o que seria o interesse de uma teoria do desenvolvimento do ego, que ele exemplifica com as pesquisas de Jane Loewinger. O sumamente interessante no trecho da resposta de Kohlberg destacado por Benhabib, é que ele joga a oposição entre esses dois interesses teóricos conforme o que distingue “raciocínio sobre justiça” e “questões sobre a natureza da 'vida boa'”. A impossibilidade de reunir ambos os interesses num só aporte teórico é expresso por Kohlberg conforme um parâmetro metodológico. O primeiro se prestaria “a uma análise formal estruturalista ou racionalista”, mas o segundo não seria tão subsumível “nesse tipo de estudo”.
            A contextualização de Gilligan conceitua  algo que tem a ver com “respeito pelas necessidades dos outros e mutualidade do esforço para satisfazê-las”, na expressão de Benhabib, enquanto essas necessidades não são possivelmente homogeneizáveis, mas estritamente localizadas, pessoais e mesmo circunstanciais. Mas o que não se esclarece suficientemente é o que se está entendendo por esse respeito. Como vimos, o nível 3 é aquele em que se permanece dependente da aprovação dos outros para tomada de decisões. Poderíamos fazer o que nós mesmos não consideramos certo, se tal fosse o consenso do grupo que "respeitamos". A moralidade do ponto de vista da justiça, inversamente, é o que aplicamos como exclusivamente nosso próprio juízo sobre o que é justo, independente das consequências.
            Ainda assim, o ponto em que Benhabib intercepta a polêmica Kohlberg-Gilligan é aquele em que a transformação que esta propôs para o conceito de maturidade moral depende, sim, a seu ver, de uma reformulação na conceituação do ego, o que vimos não ser exatamente o interesse de Murphy-Gilligan, que pretenderam manter-se estritamente no âmbito de uma teoria construtivista da moralidade. Porém, Benhabib não propõe, por aí, estar desdobrando o tema da moralidade para o que seria uma teoria do ego, uma psicologia social para uma psicologia da pessoa, por assim expressar, para ancorar nesta, aquela.
          Mas operar uma crítica da oposição de Kohlberg entre essas duas instâncias, para demonstrar como na verdade o pensamento moral ocidental depende de uma concepção de ego, mesmo que não o tematize e o maneje implicitamente. Quanto a isso, não me parece que seja o caso em Piaget - pelo contrário, considero a expressão "sujeito epistêmico" metafórica. O que Piaget conceitua são estruturas cognitivas e operações judicativas. Ele não tem uma teoria da formação e explicação do que seja "subjetividade". Limita-se quanto a isso, a lidar com a autoperceção.
           Muito da argumentação de Benhabib será então uma reafirmação do que em Habbermas se encena como a própria Linguistic Turn, ou seja, uma desqualificação das formas de situar as questões do pensamento humano numa teoria geral da consciência ou do intelecto para mostrar como as categorias principais dessa área – sendo para Benhabib fundamental a do ego – devem ser interpretadas a partir de uma teoria geral da linguagem. Como sabemos, no entanto, para Habbermas a linguagem é apenas o meio transparente da comunicação, o que habitualmente seus críticos mostram ser uma concepção ingênua.
          Mas ela desenvolve a Linguistic Turn em proveito da teorização feminista, isto é, no meio do caminho apresentando a desqualificação esperada da filosofia moderna, no que tem de persistente na contemporaneidade, por meio de uma leitura feminista da história.
          Por aí trata-se, então, de mostrar como, se o julgamento moral depende de uma inserção na linguagem, o ego não pode ser tratado à parte, mas seria o operador linguístico fundamental, de modo que a oposição metodológica de Kohlberg não poderia ser procedente. Essa é também a objeção lacaniana a Piaget e sua noção de reversibilidade. Mas do ponto de vista de uma teoria da cognição, não creio que seja de todo pertinente, e o próprio Piaget, na sua polêmica contra a fenomenologia, mostrou não ser útil nem demonstrável a premissa egológica, uma explicação global da subjetividade, para estudar as estruturas cognitivas ou o formalismo do juizo moral.  Ele está assim menos comprometido que Lacan e os psicanalistas, com meros pressupostos na verdade indemonstráveis, sobre o inconsciente.
           Mas sem dúvida há o problema do etnocentrismo em Piaget. Kohlberg e os psicólogos na trilha do desenvolvimento mais recente, tem  como vimos investido nessa problemática. Ele sugere que a estatística do desvio quanto às mulheres nos testes aplicados pode ter a ver com fatores educacionais. Na verdade, como se vê em Butcher, há amplo leque de variação de gênero em testes, não só piagetianos, e algumas dessas variações são  relativos a idade, outros a contextos sociais, etc.
          Em todo caso, com isso Benhabib supõe fornecer uma explicação que Gilligan também necessitaria, como qualquer posicionamento de uma teoria da moral sem explicitação do modo pelo qual se pensa a subjetividade enquanto agenciada socialmente, ou seja, sem a reversão metodológica das ciências humanas pelo parâmetro da linguagem. Mas assim, também, a universalidade da comunicação à Habbermas deixaria de poder trafegar conjuntamente à oposição público-privado, político-doméstico, sem precisar deixar de ser válida, se a categoria fundamental da linguagem, como o ego, não pode ser concretamente situado sem a inclusão da sua condição incorporada, sexuada.
            A inconsistência desse amálgama foi tangenciada por Jane Flex ao criticar a posição do feminismo que, especialmente na França, imbricou as questões de gênero na premissa da teoria da linguagem como precondição egológica. Já notamos como de fato o deslocamento das retóricas da otherness depende de uma inserção na prática que não está a princípio "mediada" pela linguagem comunicativa, mas sendo a relação com a linguagem enquanto signo, e por outro lado o como dessa mediação comunicativa, o que está em questão determinar.
             A meu ver, seria de fato inexequível contornar o determinismo, como o que em Habbermas opõe o material e o simbólico, como a esfera do poder e do trabalho à esfera do valor e da significação, de modo a lograr atravessar a oposição público-privado, apenas pela ética da comunicação.
           Pois o que resta inconsistente no próprio Habbermas, é que isso não permite situar o poder senão como uma função instituída, enquanto o que vemos, numa ótica da otherness, que não pode subsumir a opressão a uma categoria homogeneizável, é a sociedade/dominação como uma rede de relações de poder. Uma coisa é querer humanizar a política, mas algo muito irredutível a isso é solver como políticas toda trama de relações socialmente postuláveis. Assim, a pragmática da comunicação habbermasiana não garante que os constituintes universais das regras do discurso proporcionem algo mais do que os efeitos dessas relações de poder que é o que se quer confrontar.
            


          Na leitura de Benhabib, a teoria moral e política da modernidade seria interpretável como transição da moral convencional para a pós-convencional pela terminologia de Kohlberg, uma vez que modernamente o que se pretendeu foi  uma legitimação “socialmente aceita à luz de princípios de um contrato social”.      
           O político na sua autonomia somente se estabelece como o objeto da teoria moderna, não nas teorias antigas e feudais, mas enquanto algo que emerge no campo do Saber não poderia deixar de manifestar essa pertença epistêmica, enquanto que em nível histórico o colonialismo está rendendo à burguesia no centro o poder de mudar as regras do absolutismo, por um lado, e manipular o seu exercício com vistas a confrontar os limites socialmente impostos pela nobreza, por outro. Assim, o político, como objeto autônomo, se coloca também como necessário, universal, e as teorias do contrato vem atender a esses requisitos.
                Benhabib observa, contudo, que paralelamente a esse deslocamento, na origem da teoria política moderna, “a esfera doméstica permanece no nível convencional”. Entre o que ela designa a “esfera da justiça”, e essa “esfera doméstica”, parece-me que podemos estabelecer a oposição entre direito e ética como aquilo que deriva da estipulação do político numa premissa de universalidade independente do vínculo da pertença comunitária.
        Benhabib coloca as coisas de modo que o direito, enquanto algo que a teoria política torna fundamentado, é desde essa inserção moderna, como esfera da justiça “considerada como o domínio onde cabeças de casal masculinos independentes transacionam uns com os outros”.
          Creio que isso não é inteiramente falso, mas por “considerar” teríamos que propor algo que não tem um caráter ativo, como algo sobre o que houve uma decisão, pois de forma alguma estava a esfera dos costumes colocada em questão. As teorias modernas do contrato social não conceituam para além do limite da sua generalização enquanto constitutivo da sociedade,  o sujeito privado. Somente desde o Romantismo, quando há ruptura com a teoria do contrato social, é que a subjetividade vem a ser pensada no Ocidente como aquilo que o direito cobre e o que é também o constituinte da população - em vez da classe, o estamento ao que o sujeito pertence.   
      O  corolário de Benhabib é que paralelamente, “ a esfera doméstica-íntima é posta além do pálio da justiça e restrita às necessidades reprodutivas e afetivas do paterfamília burguês”. O que estou enfatizando é que essa esfera não é pensada por ser o domínio subjetivo, mas justamente por isso não se pode dizer que está pela teoria do contrato subsumida à premissa da autoridade masculina. Ela é relegada ao impensável pela teoria, ao costume, à moral e à religião.
          A esfera familiar é efetivamente reservada ao ético, ao pessoal e ao íntimo, mas não poderia por isso mesmo ser estatuída nesse âmbito pessoal por premissas que regem a esfera da justiça. É somente naquele aspecto formal pelo que a instituição é estabelecida como socialmente existente, para efeitos de propriedade e atribuição de parentesco, que o direito tem a ver com o familiar, como também no que geralmente o direito prescreve enquanto direitos de cidadania política, para cada membro especificamente, como para todos eles, nisso não se distinguindo o dentro do fora, o que pertence à família e o que pertence à sociedade.
         Portanto, a história do feminismo começa com a invasão, na esfera do pessoal tornada autônoma em relação à esfera social-pública, de um pensamento ético também ele racionalizado sobre o que até então era a prescrição religiosa que se exercia, porém, com base em pressupostos ordenados de forma tal que essa oposição, essa fronteira entre as esferas, não existia. O feminismo começa a ser uma corrente na literatura e na prosa de ideias desde a transição ao Romantismo, e se afirma ao longo do século XIX muito relacionada às premissas deste.
           A teoria política moderna, seja na forma do contrato, seja na do a priori, não impõe essa invasão, nesse sentido pelo que ela não a prescreve, nem poderia fazê-lo, pois como assinalei, ela não pensa o  sujeito privado. Na medida em que escava a oposição da lei e do costume,  que é totalmente inversa aos princípios da dominação eclesiástica feudal, a teoria política moderna, de Hobbes a Kant, determina esse lugar vazio, esse lugar que ela não deve pensar, o lugar do sujeito enquanto privado. 
            O problema de manter a questão feminista no parâmetro identitário é então esse pelo que, por aí, ela não ultrapassa os discursos de emancipação que apenas reproduziam os critérios recebidos pelas fundamentações universalistas-ocidentalistas, as quais não podem deixar de veicular os mesmos princípios que regem o logocentrismo, na forma da distinção fundamento-suplemento que é o que comanda a binareidade nos gêneros, como a contraposição dual em tudo o mais.
             Como vimos no recalque de Benhabib à livre associação de grupos, também a comunicação habbermasiana é um modelo de recalque da pluralidade dos gêneros de linguagem como igualmente representativos da sua operacionalidade. Por tais recalquer, torna-se simplificável e homogeneizável o que na verdade não se mostra por si mesmo assim.



                                    
     6 - A estrutura entre o moderno e pós-moderno /  inconsciente e geopolítica
           
            A narrativização do romance no Realismo de certo modo resolveu também para a crítica estrutural-funcionalista da metade inicial do século XX, o problema que esse gênero coloca na “modernidade”. Entre o protagonista “desorientado” e seu anti-heroico caminho individualista, de Benjamin; e a totalidade da obra como desvelamento da consciência universal do herói, de Bakhtin, o romance cada vez mais se pronunciou para a critica literária como a questão e a resposta quanto à unidade do gênero, no sentido do como do romance “moderno” corresponder a uma unidade. Há explicitação de que esse é um romance situado, “moderno” nesse sentido polissêmico do termo que significa na verdade “contemporâneo” ou “desde o Realismo”.
             Assim, a Vanguarda coloca a princípio para a crítica, não um problema do romance, e sim da literariedade em geral, se a Vanguarda desconstrói as formas da tradição. E quanto ao Romantismo, a complexidade de sua estética no que tange ao romance, é reduzida à centragem na poesia das suas soluções estéticas em prosa, o que se revela oportuno ainda para depois, quando se trata dos enigmas que cercam o Simbolismo, resolvê-los pela redução dos simbolistas a românticos ou neoromânticos. É interessante notar que esses enigmas surgem porque o Simbolismo conspira no sentido de superar as limitações do determinismo sociológico do Realismo, mas é no plano da forma que ele impõe sua ruptura.
          Podemos tratar o verso branco em termos de antecipação da Vanguarda ou de modernismo pioneiro? Baudelaire, que se inclui entre os simbolistas, e Mallarmé, são também os primeiros modernistas. Assim, o mistério reside nisso pelo que no plano da forma, o seu pronunciamento é pela oralidade livre que se associa geralmente ao Romantismo, mas o Simbolismo é irmão gêmeo do parnasianismo e daqueles esteticismos que cuidarão cada vez mais requintadamente da forma clássica em poesia, contra a banalização da expressão corrente ou jornalística, do Realismo. Após Bauledelaire e Mallarmé o terceiro termo seriam os investimentos clássico-formais de Verlaine e Valery.
         Se pudéssemos tratar a contemporaneidade desde o século XIX como a formação geopolítica do Ego no Centro, isto é, da estruturação do Ocidente como centro em relação a uma periferia que não se posiciona, contudo, nos termos da simples propriedade territorial, a transformação do capitalismo seria a agência de uma margem (hoje "terceiro mundo"). Ocorre que, de fato, a emergência dessa dualidade centro-margens vem a informar como "margem" o objeto das ciências humanas enquanto a questão das origens e da destinação de tudo o que se estuda em termos de conteúdo em cada uma de suas áreas: psicologia, sociologia, antropologia, etc. O “outro” em relação ao presente da cultura como o primitivo, e o “mesmo” ou Ocidente onde essa cultura como sociedade de direitos, ciência e indústria,  articulam essa dualidade. Aqui a paralogia é que o antes e o depois só se dispõe para o que seria o sujeito único da história, o ser humano, mas na verdade o protagonista da história é o que identifica o presente da cultura como o sujeito de enunciação da história - não há "História", senão no ocidente, assim se ensina.
        Não há razão empírica para que o Ocidente seja a priori esse “mesmo” que da origem à destinação disso que não passa da ficção da história de um sujeito único universal, fornece o critério para escalonamento do “outro” - primitivo ou bárbaro, mais ou menos próximo dessa paradoxal essência cujo motor não é mais a participação/imitação da cópia no modelo, e se tornou a teleologia da História. Mas desde a emergência das humanities, o que se determina como aquele nível de sua elaboração correspondente à formação de teorias gerais não apresenta um limiar prévio por onde se discute que é que os dados da alteridade cultural fornecem em termos de sua segmentação em lotes de concernência teórica, e inversamente, se os utiliza para demonstrar sua arranjada adequação à questão teleológica inquestionada e intematizada nos termos da sua adequação enquanto questão.
         Isso é tanto mais espantoso que geralmente o tratamento imediato dos dados como predispostos à questão teleológica vai de par com aquela parte da elaboração que se soma a esta para obscurecer completamente a natureza empírica dos dados. Essa parte é de novo o que se relaciona à essência: que é sociologia, que é psicologia, ou seja: que é sociedade, que é sentido da experiência humana (comportamento, percepção, subjetividade, etc.)? E quando se trata de desqualificar que sejam ciências como fazem alguns à exemplo de Canguilheim, não é porque assim totalizam a priori, mas inversamente, porque não o conseguem, por mais que o que se tenha por esses nomes ao longo da história das disciplinas seja o que esses críticos reduzem à pretensão de fazê-lo.
        É notável como nos Eua, a princípio um país de margem, não central ou europeu ou ”ocidental” na circunscrição da era capitalista, a sociologia não ostente esse ônus, e tenha sido inicialmente uma articulação da sociologia empírica com o ativismo político que resultou na “ecologia urbana” da escola de Chicago. Uma teorização competente e útil dos dados, mas não resultando num gueto de meras definições abstratas cujo caráter inócuo nós só compreendemos ser ilusório quando constatamos que sempre está relacionado à decisão sobre o posto pretérito: da “consciência de carneiro tribal” na expressão de Marx à sociedade segmentar de solidariedade mecânica em Durkheim. Mas a partir dos anos trinta os Eua já ostentam a sua conversão a potência centro-ocidental segundo a lógica do capitalismo, e o estrutural-funcionalismo se torna nesse país uma abrangência sistêmica que não obstante suas peculiaridades, se mantém coeso à tendência europeia.
           Se tratarmos a modernidade como a emergência do ego geopolítico, o capitalismo sendo definido como assimetria internacional do capital que distribui um centro dominante e uma periferia estruturalmente dependente assim mantida pela dominação cultural e pela força das armas quando isso não basta, não negligenciaríamos o fato de que a pioneira teorização do Sujeito na episteme ocidental desde a Grécia, veio a ser produzida no cenário do pós-kantismo, isto é, com o Romantismo, e sobretudo o fato de que essa teorização não foi a da unidade da consciência e sim do sujeito-duplo, dos pós-kantianos em sentido estrito à psicologia de Maine de Biran e em geral podendo ser rastreado em todos os autores importantes do período – até Schopenhauer e Nietzsche.
          Esse sujeito é assim duplicado em inconsciente e cultura, o que vem a implicar a duplicidade do sujeito enquanto privado e enquanto socializado. Essa duplicidade não é portanto entre o dentro e o fora, mas articula o sujeito de suas ações na história. O inconsciente é necessário pensar porque o organismo e o que se chama nessa época “erotismo” como tudo o que tem a ver com a recepção qualificada dos sentidos, por exemplo, na recepção da obra de arte com seus estímulos sensíveis, não mais são abstraíveis como na filosofia,  agora tratando-se de pensar o Sujeito historica e materialmente agente e existente, em vez de alma ou puro intelecto.
         O correlato do inconsciente na teoria do duplo romântico, contudo, não é imediatamente a consciência como unidade de auto-apercepção, mas o trânsito que vai da capacidade cognitiva à consistência cultural da mentalidade subjetiva culturalmente informada ("espiritualidade", o   que não implica uma imediatez do dado da cultura nem da subjetividade,  porquanto na formação conjugada ao percurso na efetividade das relações interpessoais e sociais,  se realizam os atos que serão historicamente os seus enquanto esse sujeito histórico que ele então virá a ser ao realizá-los optando desse ou daquele modo, por exemplo, entendendo-se como homem ou mulher ou andrógino como os saint-simonianos, vir a ser que em todo caso não está predeterminado de início quanto ao conteúdo, mas é a realização da subjetividade na história pelo sujeito.
           Mas desde o Realismo, a emergência da sociologia implica o seccionamento dessa duplicidade no mapa epistêmico das ciências humanas pensadas como objetivas – em vez das "ciências do espírito" românticas e explicitamente hostis a estas. Paralelamente à consolidação da sociologia objetivista que coloca a história num segundo plano como aquilo que deve ser explicado em vez de por sua vez explicar, se estabiliza aquele cenário associacionista, por onde conceituar-se o sujeito psíco-físico que é apenas unidade cognitiva de consciência, que vimos só vir a se tornar questionado conceitualmente no século XX. Mas vemos que o primado da unidade ou da totalidade ou ainda, da consciência, não se desfaz no cenário da teoria da metade inicial desse século, e quando se trata de Freud, temos a redução à consciência como à unidade, do próprio pensamento do inconsciente enquanto a sua destinação. 
         Um outro modo de tratar essa história da formação do ego no centro é notar que desde que  se instaura a geopolítica egológica, o seu requisito é vir a ser considerados inteligíveis e pensáveis a História e o devir (evolução), o que ocorre concomitantemente à emergência da alteridade de cultura, não mais apenas território/natureza, na margem pós-colonial. Que há implicação histórica desses fatores, isso se reflete no liberalismo econômico que expressa a dualidade da estrutura de dominação centro-margens, por onde surge a economia política.
         É notável como a discussão foucaultiana em torno dos conceitos de produção e trabalho se mostram irrefletidamente condicionadas pelo que se pensava do capitalismo antes dele se tornar “tardio”, como na expressão de Jameson, ou seja, antes de se mostrar como uma indústria cultural de consumação. Mas a fórmula da economia clássica, desde Smith, não é o trabalho ou a produção sem ser fundamentalmente a circulação de mercadorias cujo correlato é a consumação, tema histórico da emancipação de margens, assim viabilizada pelo interesse na sua conversão em mercado de consumação dos manufaturados das potências centrais numa enformação pós-monopolista da economia internacional.
         É interessante que após Marx, como em Wright Mills e Weber, se tenha tematizado a luta da burguesia no cenário de transição ao século XIX não tanto contra a nobreza, mas igualmente contra os setores burgueses monopolistas, beneficiários do patrimonialismo das monarquias absolutas.
           Enquanto tendo a pensar os conteúdos da história, da cultura e sociedade, o que se tornou incontornável ao pensamento moderno-ocidental foi a alteridade do signo. Não poderíamos, pois, concordar em que as reduções logocêntricas operadas sobre os dados ou descobertas das ciências humanas por aqueles setores de sua integração abstrata, são repetições nuas da metafísica platônica, como por vezes parece ser o viés de Derrida. Pois, se equacionamos essa ruptura que é a alteridade do signo vindo a ser estruturante do pensamento na modernidade, em vez de ser o que o pensamento tem por tarefa “suplementar” no antigo sentido de recalcar, enquanto “ocidental” (moderno, geopolítico), essa ruptura exibe a notável articulação pelo que cada enunciado de sua estruturação corresponde a um dos regimes da assimetria internacional do capital.
            Ou seja, o que a psicanálise descreve em termos de fases do condicionamento sócio-identitário na verdade se deixa apreender como destinação de um inconsciente de dominação que desde o que seria autêntico ao inconsciente como a alterização do signo (Romantismo), se torna uma formação individualística (“egológica”) por que essa oralidade se constrange destinar a uma analidade (Realismo), assim como do cenário de emancipação colonial e expressão da heterogenidade formadora da nação e da cultura, se transita ao cenário da implantação imperialista inglesa junto ao racismo científico positivista, que logo vai se transformar num neocolonialismo generalizado concomitantemente – não de modo fortuito – à transformação das ciências humanas em pesquisa de campo exemplarmente antropológico-social.
          Aqui não tematizo o complexo problema de situar no próprio Romantismo elementos que possam se comunicar ao estreitamento da oralidade no sentido da centralidade geopolítica, reservando apenas o espaço à afirmação de que não obstante esse problema não ser contornável num devido exame voltado ao tema, o Romantismo não pode ser resumido a esse estreitamento devido à sua teoria do sujeito duplo. No cenário Realista, contudo, onde se destinou à analidade a formação do ego portanto centrado, há uma clivagem do ego geopolítico. Se ele é o sujeito dessa história que o realismo-positivismo narrativizou em termos de história universal da civilização-racionalidade-industrialização-cientificidade, o projeto de universalização industrial-capitalista, ou seja, açambarcamento da margem travestida conceitualmente nessa ficção que é a formação de capitalismos localizados, nacionalmente autônomos, sofre uma divisão: o sujeito como a burguesia se divide em sujeito como proletariado, mas ambos são personificações do ego geopolítico (Central/”Ocidental”).
         Ou seja, nessa fase neocolonial, o discurso da alteridade tornou-se ambíguo como costuma ser o funcionalismo e a hermenêutica como numa dúvida fálica (círculo hermenêutico) em que o poder ou logos é circulado, todas as sociedades são organizadas pela mesma estruturação do sentido, mas ao mesmo tempo, todos esses discursos e inclusive a psicanálise exibem uma variável que conserva para o ocidente a centralidade de um vazio: lugar da enunciação desse logos sui generis porque sem fundamentação de ordem enunciativa.
         A descolonização paralela ao estruturalismo pós-hermenêutico seria o momento em que a miragem da unidade/totalidade que corresponde apenas ao discurso paralógico de uma centralidade da razão ocidental-científicista-capitalista, teria se desfeito como num momento de descentramento que seria aquele previsto como o da formação completa do ego (“genital”). No entanto, podemos duvidar ser este o percurso real do ego desde que analmente destinado, o que não seria por esse nosso viés o correlato de alguma natureza do inconsciente onde só aceitamos a alteridade do signo.
       O ego psicanalítico pode ser uma ficção na medida em que a analidade não destina à genitalidade como livre circulação da diferença na hiância (linguagem/relação sexual/consciência), até porque o que circula como hiância não é um simbólico puro, e sim a dominação em ato (discurso dominante/gêneros identitários) em se tratando de ocidente em particular, mas quanto à sociedade em geral, não podemos justamente dispor um diagnóstico único, e se trata da análise estrutural em cada sociedade estudada, também devendo ser incluída a variável histórica da sociedade cujos regimes desejantes podem mudar ao longo do tempo.
          E assim, como seria de se esperar em vez da maturidade genital após ter havido analidade, não obstante a castração, após o descentramento da época da descolonização que coincide com o cenário pop, ocorre desde os anos oitenta um recentramento em que o próprio mapa geopolítico está dividido em dominantes e dominados, países ricos e pobres, por riqueza porém definindo-se a reserva de saber tecnológico que impõe a servidão do capital aos países na “margem” (terceiro mundo/ Sul da linha).
         A riqueza dos países centrais de fato não pode ser definida pelo parâmetro da sua propriedade, pois toda a circulação do capitalismo internacional está estruturada em função do dependentismo da margem, tanto exploração da sua economia quanto domínio sobre suas fontes energéticas. Assim, o recentramento é uma neoanalidade, pois o outro torna a ser objetivado como outro de um saber objetivo universal (tecnologia), o qual sobredetermina a história como universal (da planetarização racional-cientificista). Não obstante, pioneiramente o mapa do mundo expressa como estruturante do sistema (moderno)-ocidental,  a própria  agência da margem ou existência do terceiro mundo. Assim, ao mesmo tempo que esse objetivismo anal do capital,  funciona no plano discursivo uma totalização funcional fálica, como já assinalei, o que permite apreender a dobra cultural da globalização: modelo central, mas sempre localmente "customerizado". Como devemos lembrar, o recentramento não especifica uma fase realmente prevista do inconsciente edipiano, mas uma anomalia histórica que podemos retrogradar para questionamento do modelo edipiano em si.
        O recentramento enquanto realidade histórica do neoliberalismo (globalização) corresponde  a uma das leituras possíveis do mapa, pelo que trata-se de um único mundo capitalista que reflete a dominância cognitivo-institucional-tecnológico-armamentista do Ocidente. Essa dominância não precisa mais manter o discurso da exemplaridade, pois o desenvolvimentismo mundial já se mostrou impossível. Assim, ela também não necessita manter a exemplaridade do legalismo, sua imposição pode ser mediatizada explicitamente pela força, como em relação ao Oriente Médio na atualidade.
        Já um ex-centramento pós-genital, como o que seria o prolongamento da linha subterrânea que continuou a tracejar-se desde o Romantismo pelo fio vermelho do duplo (“Je est un autre”) e do inconsciente não reduzido pela disciplina psicanalítica ainda que se aproveitando estrategicamente da sua linguagem, corresponderia à leitura possível do mapa geopolítico norte/sul em termos de dois mundos como culturalmente articulados de forma irredutível na assimetria internacional. Em todo caso, na atualidade do ex-cêntrico o que transita em termos estruturantes da teoria é o paradoxo ou o indecidível - como exemplo das duas leituras do mesmo mapa.
         Na projeção da assimetria internacional do capital, não poderíamos afirmar que na margem historicamente  houve a formação de um ego, mas sim somente a de um alter-ego do centro correspondendo ao situamento de si das elites dispostas localmente pelo capital internacional, incapazes de pensar essa obviedade que é sua pertença local, fantasiando-se como de direito "ocidentais" (europa/eua).
         A margem, foi agenciada historicamente como interlocutora do sujeito centrado, apenas o "tu" de uma hiância (mercado) em que ela não pode dizer "eu" a não ser como alter-ego do capital internacional, portanto, marginalizando a sua própria margem local. Assim também no centro o ego é uma função de marginalização do que pode ser disposto como outro. Além disso, as histórias de margens autênticas, quando reconstituídas por estudos alternativos, são na verdade construções de linguagens correspondentes à expressão dos grupos que não são essa classe dirigente, mas sim grupos e movimentos populacionais que não podem porém expressar na história oficial (factual) os seus projetos porque são dominados pela força pelo capital internacional quando esses projetos entram na prática, como recentemente nos golpes militares na América Latina que desarticulou os governos democráticos que estavam expressando o ponto de maturidade desses projetos de industrialização/nacionalidade autônoma.
        Isso mostra que não há capitalismo nacionalmente autônomo, que o subdesenvolvimento correlato à decisões que pontuam a hístória oficial-factual  na margem não corresponde a opções autênticas internas e sim à imposição externa representada pelos dirigentes "testas de ferro" do capital intenacional e por este impostos pela força ou pela manipulação, como muitos estudos já demonstraram - sobre isso, especialmente o estudo de R. Dreyfuss sobre o golpe militar no entorno brasileiro, e o de Claude Julien sobre o íntervencionismo americano em outros situamentos geopolíticos. Para viabilizar o progresso local a sociologia do terceiro mundo geralmente prevê a nacionalização de empresas e a reforma agrária, e somando-se a isso, a história local demonstra que  é preciso romper com a dominação internacional e projetar a economia com vistas ao mercado interno cujo sujeito local é pensado existente em si, o que não significa retirar-se do mercado internacional, mas não aceitar o jogo imposto pela dependência total ao mercado externo e ao capital internacional.
        É preciso, portanto, projetar o sujeito pensado da nacionalidade. Ou seja, isso também não é o mesmo que o marxismo, para quem o nacionalismo era anátema. Aqui, contudo,  não sobredeterminamos nacionalidade por qualquer estereótipo totalizante pessoal-identitário - do operário, por exemplo - e sim apenas como realidade econômica e circunscrição democrático-política. A questão cultural dessa realidade da nação, não seria o caso de estender-se aqui ainda que seja o mais importante na prática dessa projeção, mas podemos apenas mostrar que o Romantismo a encaminha por um conceito de formação heterogenética, mistura dos povos que constitui processualmente um entorno nacional-cultural-linguístico, bastante oportuna.
          Nessa linha deveríamos rejeitar firmemente a unificação internacional do português, sem atenção para a formação da nossa língua brasileira efetivamente praticada, e que está até hoje sem uma descrição aplicável ao seu cotidiano exercício, pelo que forçosamente nós todos falamos errado aqui - manobra típica da neutralização do sujeito de nacionalidade pelo Alter-ego do centro. 
          Escusado lembrar que nessa contingência os canais da cultura oficial são restritos à expressão da classe dirigente com sua mentalidade centrista para quem o outro da cultura (pobre, inferiorizado, não-"ocidentalizado") é maior horror que para o próprio ocidental no centro - é o sem cultura, o sem idioma,  o "jeca", o caipira, o responsável pelo atraso do país porque geneticamente idiota, sub-raça, etc., aquele, porém, a quem não se concede acesso aos canais de letramento no país. Essa dominação é historicamente variável, contudo. O recentramento neoanal neoliberal tem operado de forma espantosa o fechamento institucional, em relação ao período anterior onde se consolidaram os projetos de nacionalidade autêntica que mantiveram sua mentalidade atuante como resistência à ditatura.
         No pós-estruturalismo desde os anos oitenta há muitos exemplos de recentramento – como Deleuze que transita de uma retórica eivada de motivos transculturais a uma focalização na tradição filosófica ocidental com vistas a constituir uma unidade do conceito que vai ao cúmulo de resgatar Platão, o que de certa forma também é um pouco o que faz Derrida em Salvo o Nome.  Ou na literatuda de "psicologia social" que na era pop sempre veiculava notícias da irredutibilidade cultural mostrando a impossibilidade de universalizar parâmetros por exemplo como "agressividade" ou "competitividade" - os Zuni não fazem corridas senão para esperar que todos atravessem a linha e assim "vençam", os testes de inteligência ocidentalmente centradosencontram obstáculos entre africanos  tribalizados por justamente não haver noção de competitividade, etc.. Hoje em dia, inversamente, manuais de psicologia social concedem pouco espaço a "altruísmo" e tratam isso como um enigma, enquanto "agressividade" ou "competitividade" são estereótipos quase-consensuais a propósito do "homem". 
        Já no pós-modernismo temos o cenário dos “estudos culturais”, o que chamei as retóricas da otherness que inversamente, formam os horizontes do ex-centramento quando se compreende a história como desconstrução do universal e projeção de linguagens expressivas da alteridade cultural, seus conflitos e seus processos formadores.
        Aqui interessa-me sobremodo acentuar que “estrutura” é o que se viabiliza no pensamento moderno-ocidental como equacionamento do seu problema crucial da alteridade do signo, por onde esse pensamento opera a sua egologia geopolítica da dominação, somente no cenário pós-realista que podemos designar o da “linguistic turn”.
         Ora, é só nesse momento, entre o pragmatismo de Peirce e a lógica de Boole, que se pode falar de “fantasma”, pois até aí os valores são constitutivos de um ego ativo, isto é, são atividade desse ego, seja no Romantismo, onde trata-se de sua constituição; seja no Realismo, onde trata-se de representação da única realidade, material-social onde no entanto os valores são a objetividade em si. 
          No cenário do Simbolismo, quando se inicia a "linguistic turn", inversamente, os valores transitam para a operosidade inteiramente neutra do ponto de vista do sujeito ou da objetividade concreta, ou seja, para aquela da estrutura (linguagem). Como no poema de Fernando Pessoa, Ulisses ou o significante mítico não precisa corresponder a qualquer significado transcendental (material/subjetivo ou histórico concreto) para ser factualmente (na história da cultura) o fundador de Lisboa (como reza a lenda a que se deve o nome da cidade). Assim, teríamos “modernismo” enquanto dura o fantasma, que não é “espírito” ( no sentido romântico do correlato das ciências humanas), é o oposto do espírito que Ulisses seria se fosse algo mais que o significante vazio, ao "fundar" Lisboa. Nesse ponto devo registrar que minha leitura desse poema não coincide com a de Jackobson.
          Teríamos pós-modernismo se algo rompesse a economia do fantasma, e creio que é o que ocorre quando o “eu” não deriva automaticamente da função linguística, mas inversamente, é o que como assinalei se sabe estar variamente construído nela, e então se delibera como vontade engajada de variação. A transgressão do construído implica a canibalização da cultura ocidental ou do significante, de sua altura ou de seu falogocentrismo. Mas isso não implica agora a fragmentação auto-punitiva do “eu”, e esse é o caráter desconcertante para a crítica. Aquela fragmentação transita como o limite da economia do ego geopolítico estruturado em função do fantasma ou significante logo-linguístico-cêntrico. Rompendo-se "gramatologicamente" com a oposição de fora e dentro identificáveis, não se idealiza a hiância como transparência ideal do sentido, mas inversamente, se estamos desacreditando da sua imparcialidade, o heterogêneo não se fixa necessariamente em lugar algum, sem que isso implique o recalque do corpo (a restância da Letra).
            Desde a emergência da estrutura, isto é, desde o Simbolismo e ao longo do Modernismo, o que o romance tematiza é a emergência dessa função comum produzida como significada – o heroi ou o sujeito reflexo fantasmático da estrutura-fantasma (“ausente”), isto é, produzido pelo significante puro, como ilusão do significado material. Mas que a ilusão seja de um significado material, não ideal, é o que conserva toda a relevância, de modo que não temos por correlato do herói moderno senão o pequeno, o comum, o homem da massa, o alienado, “sem qualidades”, o Ulisses joyceano.
             Já no momento pop, temos a transgressão desse construído, mas vemos que desde o modernismo materializar (fantasmatizar) o construído enquanto tal implica a transgressão de todos os códigos da tradição estética ocidental organizados em torno da idealidade realizada como apagamento da construção, mímesis celeste do universal – isto é, onde não se tratavam de procedimentos materiais em poética, apenas repetição do cânon cuja circunscrição de tradicional era bastante para a redundância de sua idealização. Contudo, no momento pop se a transgressão é ainda isso, ela toma a sério o que transgride, é autopunitiva ou auto-anuladora, o que não ocorre no pós-modernismo.
              A aproximação de três autores bem relacionados a cada um desses cenários poderá ser útil aqui, tratando-se de James Joyce, Jack Kerouac e Doctorow. Enquanto críticas da dominação, esses escritores integrantes da produção romanesca inscrevem o sintoma - a dominação narrativa da história universal (da "civilização"), que se trata de desconstruir.
            Ou seja, são três empreendimentos de desnarrativização ou descontextualização do sentido/unidade/significado. Mas a cada empreendimento, trata-se da mesma inscrição que na tópica inconsciente, produzindo o sintoma, destina a história: ora como epifenômeno do significante, ora como o que é preciso deslocar na sua construção de um sujeito ele mesmo universal. Na pós-modernidade, trata-se assim do retorno pós-narrativo do histórico a construir como linguagens não-centradas, e nesse sentido alterizante (romântico) pelo que não há sistema que possa estruturar universalmente a História. Podemos notar o quanto isso está relacionado e dependendo da emergência da estrutura, mas como se trata, também, do seu ex-centramento.



            Nota:  a propósito da articulação da projeção do inconsciente geopolítico à história do pensamento ocidental, teríamos que notar o seguinte. O surgimento do tribunal de direitos, da democracia e da retórica enquanto um pensamento da linguagem concomitante ao surgimento da filosofia, são expressões de uma mentalidade não-homérica, ou seja, não são diretamente relacionáveis à letra do mito que reproduz a soberania micênica num contexto já grego, após o quadro de invasões dóricas.

          A mentalidade de que se expressa o surgimento desses itens é aproximável à letra do mito de Hesíodo e ao entorno das cidades jônicas assim como o descreveu Carl Sagan - cidadezinhas democratizadas, não de nobres latifundiários mas de comerciantes ou artesãos, em todo caso com apreço pelo trabalho manual,  e aplicação do pensamento a problemas práticos do devir. Também foi estudada por Nietzsche como expressa no teatro da Polis, notadamente conceituado por ele como não-homérico. E devemos lembrar que o estilo jônico é fortemente feminilizado. Essa mentalidade é  uma oralidade cujo desejo não é narcísico, porém, e sim  descritível nos termos do inconsciente de alteridade conceituado em Oswald de Andrade, onde o inconsciente pensa o múltiplo e o heterogêneo, ao que me parece extensível ao inconsciente tematizado no Romantismo. Também as problemáticas sofísticas, como as posteriores escolas céticas ou autodesignadas "empíricas", o ilustram.
           Podemos designar essas formas de mentalidade "popular", ora porque o mito hesiódico e o teatro da Polis podem ser antropologicamente, a meu ver, associados ao chamado "mito popular" (não-"sacerdotal") da classificação de Eliade, ou porque sua expressão se afirma juntamente ao êxito da extração não-nobre ao longo da luta de classes que tem lugar na história grega entre aproximadamente o século VIII ac. e a democracia ateniense como seu resultado, no século V ac., entre ambos tendo havido, desde a emergência do tribunal de direitos, a inserção da lei escrita.
         Contrariamente a essa mentalidade popular, a filosofia como sinônimo de metafísica que surge apenas desde o Sócrates platônico é uma expressão da mentalidade oligárquica ou aristocrática cuja expressão pioneira num entorno já grego (após as invasões dóricas) é o mito homérico. Entre ambas as mentalidades, oligárquica e popular,  não há continuidade. Os sofistas não são egoístas sutis, como um nobre libertino francês da época clássica, mas sim pensadores engajados na facção popular (não-nobre) da luta de classes que àquela altura havia se convertido na manutenção da democracia ateniense.
         A democracia não é a extensão à cidadania da igualdade dos guerreiros arcaicos que podiam praticar uma palavra dialogada entre si devido à  sua paridade de status. A democracia não é o governo do "povo" igualmente oposto à "elite", é sim o governo que se exerce por complementaridade à "população" local heterogênea, composta pelos vários grupos e estratos sociais da nacionalidade, por onde ela se exerce como um nível público irredutível aos particularismos privados objetivando leis que expressem as regularidades de possibilitação da convivência pública dos diversos grupos e pessoas físicas.
        Esse nivel público não expressa nenhuma verdade da pessoa ou do elemento grupal, apenas as regularidades da convivência da heterogeneidade, inversamente, quando se pensa que deve expressar, temos uma oligarquia, isto é, uma dominação em vez de uma democracia.
       A metafísica como expressão do pensamento oligárquico se afirmou desde o decorrer do século quatro, de Platão a Aristóteles, num quadro histórico antigo enveredando para a hegemonia dos impérios helenísticos e depois romano. Esse pensamento prolonga historicamente a reação da nobreza ao longo da luta de classes e da vigência democrática. Aqui devemos notar que se a metafísica  se comunicou pela via histórica como "tradição" do pensamento ocidental, é um despropósito associar essa tradição ao liberalismo político ou ao Estado de direito. Pelo contrário, quando na modernidade estes reemergem, para em seguida viabilizarem a democracia da nação contemporânea, paralelamente há a ruptura epistêmica com a metafísica, ruptura  que configura a suficiência epistemológica  das ciências empíricas, o que até aqui era impensável desde o platonismo e os cenários de dominância dessa metafísica. Junto a que, naturalmente, está havendo a ruptura política para com as monarquias ou regimes aristocráticos, ruptura para com esse regimes tradicionais no ocidente desde os contextos desiguais dos  impérios helenísticos e do feudalismo.
          Ora, consolidando-se essa dominância, o que o pensamento oligárquico produziu sob o nome de filosofia foi um logomito da centralidade, o que não existe na letra do mito e nas formas de pensamento popular antigos. A altura ou céu das ideias, é uma expressão analógica, pois de fato, a ideia ou essência como o único real é o que se exerce como interior das coisas ou sua identidade. Esse regime paralógico de fundamento-suplemento foi bem reconstituído por Derrida, mas devemos notar que se ele continua atuante ao longo da Idade Média, ainda que modulado pela letra do mito escrito cristão, tão logo irrompe a visibilidade da margem sua economia se transmuta por uma operação de transcendência própria ao barroco.
         Aqui não há mais um único real ideal, frente a que o devir é pura aparência ou nada em si. Mas há o devir como essa margem de natureza coagindo ser pensada, o qual não podendo por outro lado ser mais que natureza na ambiência de uma dominação cristã e monárquica, é inserido como infinitização de caminhos ao real transcendente - espelhamento infinito, rotas de desengano, vertiginosas criações na margem que no entanto só estão aí para serem suprassumidas pelo cristianismo assim como o corpo pelo espírito, fantasias de autômatos, artifícios de comportamento cortesão. A figura da espiral infinita, que seria essa alteridade coativa ao pensamento, no entanto, se corta pela antítese do mal e do bem, assim como o Real transcendente ou pensamento puro (mente de Deus, intelecto, Identidade), se reduplica mundanamente entre o bom espelhamento (ocidente cristão e suas figuras, o jesuíta e o imperador), e o mau espelhamento do desengano como pura aparência (o selvagem inconvertido, o herege = natureza oposta à cultura por mais que aparente ser "humano") .
           Assim, ainda que já exista uma dualidade uma vez que existe a margem, no barroco o ocidente não está ainda egocentrado geopoliticamente, posto que não há cultura na margem, não há alteridade de fato, o que a teoria política do contrato social expressa concentrando a sua originalidade em relação à teoria política antiga, a partir da disposição do problema da irredutibilidade dos estados de natureza (selvageria) e de sociedade (ocidente).
         O barroco exibe várias figuras da dualidade - espelhamento, infinito, reflexo, paródia. Mas não uma literatura dos duplos como ocorre no Romantismo, quando se estende "sociedade" ao que antecede a contemporaneidade tanto quanto à margem. Havia dualismo, mas não duplicidade pensável afirmativamente para os dois termos. Não ha tampouco qualquer psicologia do sujeito, não obstante a filosofia cartersiana que é ainda somente do intelecto, o que torna despropositadas as histórias da psicologia que começam com Descartes, se conhecemos os desdobramentos da psicologia do "eu", de Maine de Biran.   
         O fantástico romântico não é apenas a sobreposição absurda de lugares predispostos numa característica universal de tipos, à Walpole, mas compõe o itinerário da formação de uma psicologia, uma constituição do personagem, o que se comunica de Hoffman a Borges. O ônus da demonstração desses tópicos não caberia aqui, mas se desenvolve em estudos paralelos, alguns  também já recenseados em blogs ("estudos gregos", "crônica do Rio"). Assim, as figuras metafísicas da centralidade, antigo e barroco, geocentrismo do mundo fechado ou centro-transcendente em relação ao mundo infinito, não chegam à centralidade unicamente do ego como ocorre na modernidade.
        Antes daquilo que geralmente se designa  modernidade, desde o século XIX, não há o sujeito pensável, a história como ciência social ou a biologia evolucionista no Ocidente, mas tem se mostrado sempre mais oportunos os estudos desse cenário que equacionam a visibilidade da margem cultural/socialmente pensada como intrínseco ao que se desenvolve em termos estruturantes ao saber ocidental, isto é, em termos de tópica (posição) do signo no inconsciente linguagem, como na Gramatologia de Derrida.
          Como já assinalei, é preciso, contudo, ocupar a suplência, mostrar que ela não é uma operação abstrata, mas se expressa no devir histórico como dominação. Assim, a metafísica platônica não aponta para a indeterminação do lugar da linguagem, mas sim para o fechamento identitário do governante-dominante do discurso sobre a multiplicidade da parole, do prazer de falar entre falantes da democracia grega e dos sofistas.
        Um dos maiores despropósitos já cometidos se exibe em Ricoeur, que apresenta Platão  junto a Aristóteles, notórios adversários da democracia, ainda conjuntamente a Rousseau e Hegel, como artíficies do Estado de direitos "igualitário" contemporâneo - todos teriam concebido o mesmo conceito desse Estado. Poderíamos esperar que a revalorização da sofística e os estudos históricos gregos da atualidade servissem cada vez mais para a impossibilitação de deformações históricas assim.
           Mas a  ficção de uma tradição ocidental que viria da antiguidade metafísica determinando como um processo fechado autônomo o desencadeamento da ciência moderna empírica se tem demonstrado, concomitante ao recentramento, um dos mais tenazes focos de discrepâncias notáveis na leitura histórica dos gregos à modernidade, notadamente quando se trata de história das ciências, porquanto desde o estruturalismo trata-se do elo entre  inconsciente e produção de saber.
            O importante a nossos propósitos é então afirmar que não há um inconsciente egológico operando universalmente, que vai se apoderando da sua capacidade individualizante de expressar-se paralelamente à história da metafísica-ciência ocidental e no exterior do que só há o que havia antes desse apoderamento no ocidente, isto é, o balbucio do pré-lógico.
          Inversamente, os discursos da dominação, metafísica ou condiciomento pela analidade, são retrocessos em relação ao que um  inconsciente não-narcísico mas não analmente destinado expressou na forma do prazer da socialização da palavra sofística e retórica o qual estava já na Antiguidade concomitante à produção de um pensamento político e de uma ciencia empírica ainda que não "experimental", os quais sempre são sintomaticamente recalcados quando se trata de metafísica ou de ego centrado, como se exemplifica pelo tratamento teleológico dos dados em ciência humanas contrariamente ao que ocorre quando não há o a priori da centralidade. Contrastado ao aborígine brasileiro, por exemplo, o jesuíta não tinha um saber empírico de aplicação de substâncias medicinais, mas somente a superstição de uma pseudo-medicina dominada pelo dogma bíblico.
            Não podemos generalizar o inconsciente de alteridade - conforme Oswald designou pelos seus estudos da sociedade "Pindorama" ( Brasil ante-colonial) - para todas as sociedades não-ocidentais, mas sim objetar que a dominação política ou a sujeição interpessoal sejam concebíveis nos termos de natureza do inconsciente humano. Isso, se há entornos específicos onde essa pretensa universalidade não se verifica. Resta mostrar, contra todo tipo de discrepância notável, que eses entornos não são amostragens de inumanidade ou de atraso político em relação ao ocidente metafísico.
         A centralidade não é um universal do mito, contrariamente ao que se afirma nas mistificações que pretenderam fazer todas as culturas apontarem para uma tradição única ocidentalmente redutível. É importante lembrar que a fabricação desse novo mito dos mitos ao longo do século XIX, que se aproveitou da emergência das ciências humanas para transpor-se numa suposta "tradição" imemorial de todos os povos, está na raiz da distorção nazista dos conceitos românticos de nacionalidade e cultura que conforme alguns demonstraram não se dispensou de um assim rotulado misticismo designando-se magia. Escusado notar que essa distorção nocional não é o que estamos objetivando pelo termo "nacionalidade", como ficou claro na sua circunscrição democrática.
         Os mitos, não sendo totalizáveis, generalizáveis ou unificáveis por qualquer padrão universal, não são unicamente extensões de crenças, são linguagens pelas quais podemos entender as relações que numa cultura são inteligíveis. Por isso seu estudo interessa à teoria do inconsciente, onde são as relações de inteligibilidade o que importa compreender como se formam, portanto sendo muito preciso saber quais são as que podemos sustentar existentes, julgamento de que depende, por exemplo, a decisão crucial sobre se há ou não evolucionismo de mentalidades - aqui estando claro que não o supomos de forma alguma. Os mitos são estudados conforme a particularidade da cultura em que coalescem, e num nível de conceituação mais alto, podemos compreender apenas como são estruturados em termos de gênero, isto é, novamente, como linguagens. Todas as formas de conceituação, porém, são teóricas e as teorias são grandemente contrastantes, não há qualquer verdade universal sobre o homem, depreensível da inteligibilidade dos mitos, cientificamente demonstrável.


      7 - O Ulisses de James Joyce



             A Vanguarda colocou para a crítica a questão da conservação do romance como um gênero praticado na sua atualidade, devido à solvência das formas nos experimentalismos desde inícios do século XX. À época em que essa questão do romance se enfeixa no conjunto dos tópicos que já endereçam a problemática da pós-modernidade, a discussão em torno de pastiche e paródia é sugestiva de que o convencionalismo das formas havia se reenxertado na produção literária recente, aproximando-se os anos oitenta. 

                   O primeiro cenário crítico, o da Vanguarda, deságua numa controvérsia de tamanha complexidade que pouco se conserva de alguns dos seus interesses históricos - por exemplo, porque um deles era francamente censório, tratando-se para os intelectuais empregados como autoridades soviéticas e para seus satélites no ocidente, da decisão sobre o que era "romance", portanto "burguês" destinado a objeto de censura de Estado, e o que era "literatura" social-Realista, logo, educativa e saudável ao mundo comunista. Essa discussão envolvia o romance como a própria noção de Vanguarda, que era aliás o que invariavelmente ocorria com todos os problemas particularmente conceituados, desde que sua circunscrição fosse o ambiente da Vanguarda que então podemos hoje questionar se não versava unicamente sempre sobre si mesma, ainda que como objeto definido da censura. 
                  As questões em torno de pastiche e paródia não deixam dúvida de que seja como for que se as resolva, não se trata da coisa em si. Nesse segundo cenário crítico, a tendência a solver os problemas de forma e conteúdo num propósito auto-recorrente de definição do próprio cenário em termos de "pós-moderno" pode ser também notável, mas somente no início.
                É certo que muito do passado recente está ainda para ser estudado, não se pode afirmar ter sido já compreendido nem situado em termos do que é historicamente preponderante. Mesmo assim, já tendo transcorrido algumas décadas desde os focos mais aguerridos a propósito de "pós-modernismo" e "pós-modernidade", com a internacionalização da economia correlata à  formal circunscrição do conflito norte-sul após a guerra fria, e a informatização do cotidiano tendo tornado obsoletas as discussões em torno de se  "capitalismo tardio" e  "terceiro  mundo" seriam meros exageros ou realidades demonstráveis, algumas mudanças naquele questionamento já se tornam registráveis, como essa.
                Mais adentrando-se o "terceiro milênio", mais as questões se tornam específicas, não sobredeterminadas por algo mais geral como o ser "pós-moderno". Nessa circunstância, o encaminhamento do problema formal envolvido na controvérsia em torno de pastiche e paródia pode vir a se determinar com maior precisão, por exemplo, em torno da forma romance, já que grande parte da controvérsia se desencadeou como um meio de evitar o simplismo de se encarar a produção que emerge na transição aos anos oitenta como recuo das novas gerações frente à vanguarda, acovardamento diante das conquistas do modernismo, retorno do mero Realismo.
            É interessante que as opções precipitadas na direção desse critério de simples repulsa do novo  dado como sem novidade, não registram qualquer foco para a conexão de realismo e  realismo-socialista que me parece que uma leitura atual do século XX iria reter como um dos fenômenos mais decisivos tendo lugar em meios do século devido à preponderância que vai assumir a cena soviética. Ou seja, quando se tratou a princípio dos novos produtos estéticos em termos de retorno do realismo, não se cogitou do seu nítido encaminhamento social - como na crítica de Sonia Khede a Gabeira (Que é isso, companheiro?) e  Eliane Maciel (Com licença, eu vou à luta)  - supondo-se como importante literariamente apenas a linearidade da forma.
           A preservação da unidade, que podemos localizar como o problema crucial em torno do realismo socialista ou do romance no século XX - como vimos em Bakhtin - em termos do que poderia no mundo soviético servir para transpor as fronteiras da censura entre o literário e o romanesco, se fosse possível demonstrar que a consciência não era burguesa, mas o locus da unidade dialética do real que funcionava como o princípio da epistemologia e da estética marxista-leninista, vemos transitar no mundo ocidental como o ponto polêmico da Vanguarda. No parâmetro soviético, tratar a linguagem não como super-estrutura implicava que ela não devia ser sintaticamente fragmentável senão como operação niilista burguesa de torná-la ininteligível. No parâmetro ocidental, onde o problema da super-estrutura inexistia, a linguagem era o suporte do revolucionável, e desde que restassem intocadas suas leis convencionais, nada havia de fato sido feito "literariamente".
         Mas na transição ao terceiro milênio, o aparente retorno da unidade no ocidente revelou-se logo questionável. A polêmica de pastiche e paródia  envolve efetivamente noções filosoficamente essenciais como "temporalidade" e "consciência", que estava em jogo, justamente, como o espaço revolucionável da consciência "burguesa". Uma vez que não se pudesse seriamente dar por restauradas como imediatamente evidentes, não podia se tratar do Realismo nem de seu didaticismo (exemplaridade).
           É interessante que os dois títulos destacados por Khede como ao mesmo tempo o novo e o retorno realista, de fato "best-sellers" na década de oitenta, foram por ela tão rejeitados pelo que considerou sua intenção de "exemplaridade" àquela geração, mas a leitura desses livros revelam, inversamente, que tratam de um vivido da impossibilidade do que torna pensável o mecanismo de exemplaridade, da própria pessoa ou de outrem heroicizado, a saber, a comunidade da experiência possível. O estranhamento havia se deslocado do âmbito formal ou "literário" à vida, à história.
            A geração a quem ao nascer haviam sido prometidos os frutos do milagre econômico da tecnocracia ditatorial só encontrou no rise da sua juventude os resultados de uma política de concentração de rendas acumulada por duas décadas e confrontada à crise mundial devido ao intervencionismo irresponsável do ocidente no Oriente médio. Além disso, não havia continuidade cultural da ditadura à sociedade em vias de redemocratização, pois o que se tinha feito nesse ínterim era a supressão desses canais de expressão autênticos. Paradoxalmente, não havia "desorientação" possível, a ser revertida como caminho traçável unicamente pelo sujeito - pois, como já assinalei, não pode haver o "sujeito" na margem, eis o que se descobriu como lição ministrada pelo capital internacional através da ditadura.
            Esse deslocamento do estranhamentoao histórico não é o que se pode dizer para a prosa beatnick de Kerouac, onde há uma nítida função de heroicização/exemplaridade ocupada - Moriarty (On the road), Cody (Big Sur), posto que trata-se evidentemente de uma comunidade de experiência, a geração "beat", inclusive  os personagens sendo decalcados das pessoas reais que a formavam, habitualmente os estudiosos dessa literatura conhecem a associação dos nomes de personagens aos amigos reais do escritor. Essa ocupação é simbolicamente  preenchida no entanto, por um recuo do acontecimento em relação a toda unidade da experiência, uma vez que se trata de substituir a substancialidade do pensamento ocidental pelo "vazio" ensinado no budismo.
            É preenchida assim, na literatura zen,  pelo mestre virtual - sempre variamente citado na dispersão dos nomes referenciais dos sutras e da literatura oriental, citação que funciona dentro da trama, por vezes como o que está sendo feito (o personagem tradutor do sutra, em Vagabundos iluminados) ou falado (a hilariante "tradução" em gíria americana do "que o Bodhidarma disse ao Segundo Patriarca", tendo lugar "no quarto de Ben",  no Big Sur). Há portanto uma exemplaridade que assegura tanto a comunidade da cultura quanto o percurso do sujeito, sendo a subjetividade requisito que críticos importantes como Jameson e Deleuze (Cinema II) concordam ser a característica distintiva da estética do ocidente frente à do terceiro mundo, a saber, essa estética ocidental existir como expressão da subjetividade  (nível "privado"). Em Kerouac esse percurso é semrpe garantido pelo fechamento textual que conduz a fatos unicamente particulares ao personagem narrador: a estabilização sentimental com uma mulher  (On the road), a série de decisões que reconduzirão à normalidade do seu cotidiano na cidade (Big Sur).
            Por outro lado, aquele  deslocar do estranhamento ao histórico  é o que trouxe o "ex-cêntrico" - o personagem da margem - à frente da cena da prosa pós-moderna, como justamente reconstituição dos impedimentos da "subjetividade" que ocorrem em nível público (histórico e social), e consequente montagem de alternativas que possibilitem sua expressão enquanto ex-cêntrico.
            Mas aqui o recuo da Vanguarda e do modernismo é algo ironizado, pois supostamente tratava-se nos experimentalismos justo de revolucionar a consciência burguesa impedindo a unidade de experiência "privada" continuar valendo filosoficamente nos termos da lógica identitária. É assim que o designado "pastiche" e "paródia" pós-modernos tiveram por termo propostos como objeto de sua reescritura, paradoxalmente, o que teria sido, ora o modernismo (Eagleton), ora a unidade de experiência realista e/ou hermenêutica (Hutcheon). A essa altura já estava claro que o texto de experiência pessoal que havia retornado nos oitenta não era um realismo estrito, mas não devemos esquecer que essa duplicação do texto em relação ao que seria o seu intertexto, mas entre ambos tendo-se perdido a good continuation, está precedida pelo vazio zen da prosa beat que tratava um intertexto radicalmente alterizado (oriente).
          É interessante que Ragtime de Doctorow seja encenado em inícios do século XX, aquele mesmo momento da tremenda atualidade da cena do Ulisses de Joyce. Entre ambos, contudo, se há em comum a problematização do discurso que passa a funcionar como a problematização da consciência, num caso esse deslocamento fragmenta o discurso da consciência, no outro, o ironizado é sua insolvível unidade, o que paradoxalmente torna ex-cêntrico o personagem da sua fala em relação àquilo mesmo que ele falaz (Emma em relação ao proletariado,  Coalhaouse em relação ao movimento racial).
         Aproximando o Ulisses, a fragmentação procede apenas as operações através das quais um mundo é fechado por/para um fantasma, o ser/subjetividade que habita problematicamente a linguagem desse mundo. Aqui trata-se da narração cristalina (Deleuze). Instalando-se antes do espaço de conjunção sensório-motora do sujeito ao mundo circundante, ela se instala na região da fluctuatio animi.
          A meu ver, se a flutuação anímica que precede à ação resolvida não é hesitação entre vários objetos constituídos ou vias identificadas, mas “recobrimento móvel de conjuntos incompatíveis” que no cinema moderno, segundo Deleuze vai conduzir a  determinadas possibilidades cênicas, na verdade esses conjuntos estão dentro de uma regra de compossibilidade que preside a determinação da cena conforme tais possibilidades.
            Esse o problema da estética deleuziana, que se comunica ao de sua filosofia, pois a Singularidade não chega a ex-centrar uma vez que subtrai-se o conceito à historicidade para supor um devir que é todo circunscrito a um "ponto de vista" virtual -  função estrita do que aqui chamamos o fantasma. É certo que se trata, para Deleue, de subtrair-se à totalização pela linguagem e pelo signo, a fim de poder trazer ao conceito o visual, o tátil, o sonoro, mas toda experiência possível está a prioristicamente fechada nessa perspectiva particular, ainda que por um "antilogos" no entanto "ideal" que justamente define "estrutura" (sistema diferencial). O singular não impede, portanto, que Deleuze siga Jameson quando se trata de aceitar o privado como domínio intocado de toda estética moderno-ocidental.
             Inversamente, a ruptura pós-moderna em relação à economia do fantasma procede a ex-centricidade numa duplicação que impede, a meu ver, o que Hutcheon supôs como um centramento primeiro do texto ex-cêntrico, o que apenas substituiria a centralidade ocidental por uma alteridade da cultura. O intertexto é como o ocidente, Outro, não central-constitutivo-originário em relação ao que ele, inversamente, está encenado deslocar (o ex-cêntrico). Essa circunstância é aproximável ao fantástico romântico, portanto, um cenário pós apriorístico, pós-kantiano onde o conteúdo não está suprassumível pela forma, como a historicidade pela estrutura.
            No entanto, o que o texto de Joyce coloca, a meu ver, como o estatuto do seu problemático, é essa suprassunção. Ela é de fato paradoxal, apesar de ter sido estatuída depois da fase inicial "terrible" da vanguarda e quando ela se institucionalizou como uma linguagem internacional, como a solução estrutural-funcional que o estruturalismo anacronicamente interpretou como sua realização em estética. Pois, é para o fantasma e do seu ponto de vista fantasmático, que a suprassunção é fundadora-aprisionadora de mundo. Mas a  história resta como o enigma - o que já não é o caso em Deleuze ou quando o "modernismo" está na totalidade resolvido nos termos de "estrutura". Pode ser que esse resto, nós possamos depreender do texto de Joyce enquanto ele mesmo é "ex-cêntrico" (não "inglês", colonizado). Esse resto ou rastro do histórico se coloca como o fiat problemático da nossa leitura de Joyce.
           

         2 -


           Ou o caos ou as singularidades aprisionadas numa forma imutável, eis o dilema inteiramente superado por Deleuze. A estrutura é o conjunto de regularidades que singularizam uma multiplicidade, isto é, que torna os elementos singulares na imanência de uma temporalidade ela mesma singular.  A totalidade fantasmatizada desse mundo, o Mesmo, porém, deve residir nalgum ponto adjacente ao Caosmo que tal mundo insere como sua abertura temporalizante. Esse é um ponto problemático na filosofia de Deleuze, pois ela conserva o problema da comunicação de mundos possíveis. O Caosmos é ressoante, mas não um universo pensável, ao que parece. O problema, não o situo pela impossibilitação da totalidade, e sim porque se está, não obstante denegá-lo, preservando-a ainda que por meio de uma conceituação contraditória.

           Em todo caso, poderíamos aproximar o Ulisses de Joyce a essa noção de Caosmos, solvência da totalidade, proliferação das partes, mas adjacente a que, em algum ponto deve residir a totalidade fantasmatizada.  É a “chave” mística que abre o livro, a hilariante tábua de correspondências pseudo-esotéricas que regem a economia dos capítulos.
          Seria aqui uma desconstrução do sujeito/espírito justamente pelo símbolo. A subjetividade ativa cuja composição de crenças não inclui menos o Saber, anuncia-se, como um Hegel invertido, em um mosaico onde o eixo da possíveis distribuições de semelhanças numa mesma linha fragmenta-se.
           “Símbolo” e “técnica” compartem, respectivamente: a) a paródia da junção romântica espiritual de consciência e sociedade na experiência histórica; e b) a construção textual cuja constituição é um pastiche do lado subjetivo da experiência. Entre ambos é impossível situar o eixo “lógico” ou ontológico das "correspondências".
            Os "símbolos" são figuras da experiência social assim como se depositam numa alma ingênua como o fundo ideal de suas experiências, uma espécie de Tarô inventado. A modernidade aparece aqui tematizada de través mas já problematizando essa sintomatologia, pois a lista mistura indiscriminadamente figuras tradicionais e místicas (ninfa, mães, virgem, marinheiros, terra, Eucaristia, cometas), e figuras cotidianas mas enraizadas na vida moderna da cidade (herdeiro, soldados, cidadãos, servidoras de bar, editor) com figuras marginais ou simplesmente banais (puta, zelador, maré, cavalo).
           As "técnicas" misturam gêneros literários supostamente harmonizados com o sujeito da enunciação, “narrativa” podendo ser ora "juvenil", ora "senil", com fenômenos fisiológicos associados à situação contextual (“peristáltica” para o episódio do almoço, “desenvolvimento embriônico” para a visita a uma parturiente, “alucinação” para a cena do bordel).
           Isso coloca ironicamente em questão a gratuidade do gênero que parece agora tão organicamente integrado ao contexto quanto a experiência subjetiva que ele se encarrega de encenar, mas sabemos que essa coincidência não é factual, portanto uma organicidade da linguagem deve por em dúvida aquela da experiência .
            Mas desde que o "símbolo", como figuras que personificam o outro necessário dessa experiência ( “episódio”), resta apenas numa relação de correspondência com o que é ou seria intrínseco ao sujeito, tudo mais que integra sua experiência, como o local e o momento, permanece igualmente extrínseco e são elementos tão "correspondentes" como uma cor ou uma arte o que lhe seria aproximado. Em vez de aparecer como o mais natural, a experiência surge como episódio meio-fantástico, produto enigmático de associações que já se coloca em dúvida se são arbitrárias ou não, conjugadas indiscriminadamente as duas ordens de fatores orgânicos e simbólicos.
            Há relações que restam ainda mais extrínsecas entre os elementos correspondentes, desta vez instauradas pela ordem da apresentação dos capítulos e das correspondências, de modo que em geral o texto transita das técnicas “narrativa”, “catecismo” e “monólogo” iniciais às mesmas designações finais, mudando os respectivos sujeitos de “juvenil”, “pessoal”, “masculino”, para “senil”, “impessoal”, “feminino”.     
             No entanto, o paralelismo intrínseco a toda distribuição dos elementos nessa chave de correspondências só compreendemos na leitura do romance. Eu creio que podemos conservar o termo romance porque de fato há uma unidade do desenvolvimento cênico, ainda que essa unidade se construia por um paralelismo.
            O paralelismo se localiza entre duas figuras, a do jovem intelectual Stephen e do maduro pequeno-burguês Bloom. Há um paralelismo completo entre ambos ao longo da narrativa, o que se verifica pelo escalonamento das cenas. A parte I é protagonizada por Stephen, a II, mais longa, por Bloom, e na III pelos dois que se encontram, mas com o pormenor pelo qual no encontro deles haverá uma transição do foco textual de Stephen para Bloom.  Ora, quando todo o peso da composição se centra afinal em Bloom, ele se apaga pelo sono de modo que o texto se finalizará no monólogo semi-consciente da sonolenta Molly, esposa de Bloom.
          Molly repõe o personagem mítico de Penélope que o estaria esperando como ao Ulisses homérico, e no mesmo local, já que a composição assim fragmentada visa recompor um dia com dois começos na mesma manhã, o começo de Stephen e o de Bloom que acorda na cama onde a esposa ainda dorme e onde ele irá se recolher no fechamento do livro, com essa esposa que o espera.
          As partes I e II são inteiramente paralelas, compondo-se em três ambientes que variam, porém, quanto aos episódios, conforme seus protagonistas: casa, trabalho, praia.
           Para o jovem Stephen a casa é uma confraria de amigos, o trabalho é a escola onde leciona e a praia é um lugar de passeio algo amargurado pois após o trabalho ele visita a família com quem tem problemas. Stephen é o jovem intelectual consciente de esquerda, de modo que negou à mãe moribunda o seu último desejo, que ele confessasse a fé católica. Isso pesa sobre ele como uma mancha, tendo-se espalhado como um boato por toda a cidade.
           Para Bloom a casa é o lugar onde vive com a esposa e a filha, o trabalho é o jornal e o passeio na praia é uma espécie de solilóquio fantasioso, um devaneio sem consequências com uma "ninfa", uma jovem que ele vê por acaso na praia.
           A confraria de amigos(Stephen)  apresenta-se como um laço de solidariedade intelectual, portanto sempre supondo o ágon zombeteiro, a família (Bloom) é um laço tradicional, portanto supondo uma indissolubilidade independente das partes, um ser assim das coisas humanas. Ambos, porém, são vínculos que apelam para a humanidade do sujeito, a moralidade do homem, seus sentimentos supostos originais. Esse apelo forma um fiat irônico pelos excursos da prosa que se corporifica na alternância dos gêneros discursivos. Eles são, portanto, construídos, não originários como no entanto, sentem,  pensam e creem os personagens
       Ora, a família deveria ser ainda mais natural como liame do que os amigos, assim como a instalação doméstica é mais estável do que uma república de estudantes ou a estadia de um hóspede. Contudo, o laço intelectual pode sugerir-se como mais autêntico do que o matrimonial, o vínculo entre amigos menos problemático do que entre o homem e a mulher? Essa questão parece nitidamente posta pelo paralelismo do texto e é constantemente encenada ao longo deste pelas situações vividas entre as pessoas e as recorrentes reflexões sentimentais de Bloom. Aqui subiste algo paradoxal, pois enquanto questão não podemos decidir se ela é ironizada/construída ou realmente está sendo posta pelo romance como aquilo mesmo que faz do caosmos um Romance. Assim, a contrafacção da subjetividade pode estar sendo ela mesma contrafactada, há uma impossibilidade de "sair" do signo/cidade/Irlanda que traduz o caráter inamovível da Realidade. O Ulisses, a meu ver, não pode ser dito de fato desconstruí-la ou esvaziá-la.
         A escola (Stephen) é uma experiência de trabalho humilhante, pois o diretor é um homem de negócios que mantém uma relação de semi-hostilidade para com o intelectual que ele emprega, discrimina e inveja. O jornal (Bloom) é igualmente uma situação alienante. Os colegas de Bloom o desprezam por seu romantismo sentimental, sua crença arraigada em valores idealistas (o amor, a conciliação da humanidade) enquanto eles estão empenhados na luta política contra o imperialismo neocolonialista. Afinal, ao sair da redação, Bloom é considerado por seus pares, o “Aasvero”, o judeu que deve ser proscrito. Enquanto a parte de Stephen fechava-se justamente quando, saindo da sala do diretor, ouve deste uma piada sobre a proscrição do judeu, que parece endereçada a ele.
         A crença de Bloom na estabilidade das convenções é satirizada pelas situações que vive. Ele mesmo a refuta, pois não somente devaneia a ninfa na praia, uma moça que ele vê e deseja, como freqüenta o bordel da cidade. Molly sustenta uma afetividade independente, ainda que ele o ignore, tendo seus desejos, suas lembranças e até seus encontros extra-conjugais, como se depreende do seu monólogo antes do sono, deitada ao lado de Bloom quando este retorna à noite. Enquanto Stephen não tem menos uma relação ex-cêntrada com uma figura feminina, a mãe que ele “trai” mas como se com isso lhe fosse mais fiel, uma vez que se trata para ele de manter sua convicção inabalável pela palavra.
       A oposição estruturante do texto parece-me então entre consciência racional (classicismo, intelectualidade/Stephen/ativista político) e sentimento irracional (romantismo, afetividade/Bloom/pai de família), ambos porém apresentando-se como fonte de uma convicção viril, de uma identidade social e de um papel de gênero. Mas a oscilação ou diferença que assim atinge essa identidade e esse papel – ambos, Stephen e Bloom são pretendentes a encarná-lo de pontos de vista diferentes – não é tão profunda quanto o que mina ambas as intenções.
       Se há um projeto de estória no Ulisses ele se instala na progressão dos arquétipos da juventude à maturidade, do “rapaz” ao “senhor”. Mas aqui a estória está interceptada ou problematizada pela história. A tipicidade plasmada como simbolismo de ambos vê-se frustrada pelo encerramento do ideal num horizonte que o cerceia por sua inacessibilidade. A tendência ao social do jovem encontra a barreira da individualidade – sua mancha de família, sua forçada humildade. A tendência à interiorização do homem maduro encontra a barreira do social – a situação de dependência nacional, o conflito de interesses que conclama a uma luta ou a uma conscientização frente a que tudo o que lhe identifica subjetivamente e se torna rotulável como alienação.
          Assim o projeto da história se vê solvido quase-necessariamente pela profusão das estórias solvidas em gêneros– confessionais, agonísticos, de Stephen; reflexivos, conversacionais, de Bloom, - paródicos, popularescos, de ambos. O “tecido” resulta impossível, há contrafacção do “texto” que não pode se totalizar como tal nessa profusão que não se instala na profundidade dos temas episódicos, mas na superficialidade da construção dos gêneros discursivos – reproduzem-se estilos tão variados como de novelas de cavalaria à fala popular mais marginalizada, do inquérito ao teatro, do diálogo ao monólogo, da descrição pura ao fluxo de consciência.
          O sentido da progressão se preserva como do jovem ao homem maduro, da consciência ao puro sentimento, do dia à noite. Mas não mais como um projeto, já que no interior da profusão das estórias a progressão se vê solvida numa enervante e insuportável circularidade. Não é somente cada episódio que parece um mundo pantanoso do qual só se escapa por uma total descontinuidade caótica entre os gêneros, não por uma crescente realização conseqüente que conduziria de um ambiente ao outro, organicamente, no que seria uma “sociedade”. É nos interstícios mesmos, no que poderia ainda ser considerada a lateralidade entre os ambientes, que a organização social se vê comprometida como progressão linear de uma vida, entre a juventude e a maturidade.  Da juventude à maturidade, assim como do jornal ao bar, da escola à casa dos parentes, não há continuidade, mas violenta dispersão, proscrição.
           A sociedade, no sentido da convivência entre pessoas que se conhecem desde sempre numa pequena cidade, tanto quanto no interior de uma família, é uma rede de semi-tolerância e de convenções. Assim compreende-se porque tudo vai desembocar na figura feminina de Molly. É a noite da pura inconsciência, do puro sentimento meio animal, meio humano, ao mesmo tempo o mais típico da humanidade, a sua desrazão sem fim. O “monólogo” de Molly, como técnica, se põe agora como feminino, fechando o livro, ressoando com o “monólogo” de Stephen, masculino, do início, repondo a contraposição básica entre consciência e inconsciente, razão e sentimento.
         A questão se coloca, portanto, na figura desse Bloom sentimental, contrafazendo Ulisses, o pai da astúcia, símbolo da racionalidade grega e ocidental. Mas essa racionalidade do Ulisses homérico está associada a um dom oratório, a uma eloqüência que, a serviço da astúcia, pode muito bem estar aí para enganar o adversário. Como notou Marcel Detienne, enquanto a Pólis jurídica não se instala, o regime da palavra-verdade nesse mundo mágico-mítico é aquele em que por Verdade deve-se entender o triunfo do representante humano, a ordem sobrenaturalmente investida, não necessariamente a fidelidade do enunciado às coisas. Enquanto Bloom é o oposto do ufano herói homérico, sempre restando à margem entre seus pares que ou são condescendentes ou o desprezam, ele, que não sustenta um argumento sem vacilar.
          Além disso, Bloom é o homem maduro burguês, branco, moderno, assalariado-proprietário, cidadão, chefe de família. Seria impossível manter radicalmente sua oposição a Stephen como do sentimento à razão, do inconsciente à consciência convicta, visto ser homem. Como vimos, também não é possível manter a sua total identificação. Vários problemas se instalam, então, já que Bloom deveria ser a destinação de Stephen, como a maturidade o é da juventude. Mas isso seria como uma regressão, ou em todo caso, uma inviabilização do ideal da consciência, enquanto os outros homens maduros, que se mantém “conscientes”, os companheiros de Ulisses-Bloom, são filhos da nação que, conforme um dito de Joyce, como “porca” devora seus filhotes. Eles mantém seu discurso revolucionário, seu ideal de independência, mas sabem-se impotentes como todo os outros países no mundo colonizado: a Inglaterra comercia o produto da Turquia, potencial aliado da ressurreição irlandesa, no Rio de Janeiro...
          Por outro lado, será a crença de Bloom no amor, o regresso de Ulisses, vã? Essa questão é mais ou menos universal do que aquela, a do sentido da consciência social e do nacionalismo? Creio que essa indagação é o cerne do problema colocado pelo que então podemos afirmar romance. Se a contraposição mais aguda é entre o jovem intelectual e a esposa madura, como entre razão e sentimento, o fato de que a ordem está invertida – habitualmente é o jovem que associamos com sentimento e a maturidade com a razão – repõe a posição dúbia do homem, de Bloom, entre ambos, mas também o seu paralelismo com Stephen: é a crença na Instituição uma convicção autêntica, humana, subjetiva, independente de vir da consciência ou da razão, independente de ter por objeto a pátria ou a família? A economia do livro nos sugere que não, que o que se fragmentou historicamente foi essa unidade.
        A instituição deixou de funcionar como o elo material de uma totalidade natural, aquela composta de sujeito e sociedade. Uma lógica impessoal se estabelece, acima do sujeito, mas também uma abaixo ou dentro dele. Acima dele, a da sociedade capitalista, mas no íntimo dele, no sentido de mais profundo do que aquilo que ele identifica como sua personalidade, o produto de suas crenças e convicções, a dos sentimentos conflituosos pois não limitáveis por essas mesmas convenções. Em todo caso, Bloom é o lugar de interrogações que ele mesmo nunca poderá se fazer. Ele só tem certezas, ele é a tese em pessoa. Mas porque aquilo em que ele crê, ele mesmo não pode atuar desde o fundo, sua posição não é da clareza e da consciência. Bloom é o fantasma de uma classe impossibilitada, uma contradição em termos, a burguesia de um país periférico, dominado. Mas também do homem ocidental cuja tradição parece comprometida pela força do seu próprio desejo.
        Ora, o problema da história se reencontra aqui. Aparentemente é mais fácil aceitar que ninguém está determinado pelo nascimento a ser operário do que, como notou Beauvoir, a ser mulher. No entanto sentimos que a questão não está bem colocada assim. Para aceitar a segunda alternativa é preciso supor algo que nos parece relativamente simples, a saber, que o determinismo biológico não recobre o âmbito cultural, já que somos seres humanos, não animais. Apesar de certas experiências ou do cotidiano ululante, existem os relatos de experiências igualmente óbvias de inúmeras pessoas que não ostentam “naturalmente” um comportamento feminino ou masculino desde o berço – eu mesma tenho um amigo que recorda como sua brincadeira de infância preferida o cultivo da costura, e ele não é homossexual: a mãe era costureira. A experiência da menina que gostava de jogar bola de gude se perpetuou numa canção popular, etc.
Mas para aceitar que não existe o determinismo de classe é preciso romper com a noção de história que se tornou clássica no mundo moderno, aquela que se sustenta por uma equação de identidade entre a determinação da economia política – a ciência do mundo burguês – e o âmbito da realidade social.
       É interessante notar como essas proposições estão interligadas. Só questionamos o determinismo de gênero quando parece ter se esgotado a problemática do determinismo de classe, ou ter, no mínimo, chegado a um impasse. Assim, também, o relativismo de Beauvoir, que estaca nesse ponto em que é preciso constatar o impasse, mantendo-se contraditoriamente destinando a cultura ao ser. Contudo, deveríamos lembrar que aquilo que está na base dessa problemática é o mesmo que está sendo descontruído pelo Ulisses e de um modo geral pela Vanguarda, o substrato da totalidade caucionado pelo a priori especulativo do Saber como unidade identitária em si, onde este se constrói pela forma do Récit. O impasse nunca chega à sua clara enunciação, porém, antes que da desconstrução do récit se logre também a desconstrução do a priori sistêmico, a economia do fantasma.
        A defesa da “história” contra o descontinuísmo “estrutural” baseia-se portanto num grande equívoco, sem dúvida. A de que a própria história é um gigantesco Récit desde o surgimento da capacidade da escrita, quando a História de fato não tem nem trezentos anos - até mesmo parece já ter acabado nessa concepção de uma grande narrativa. Podemos oportunamente recordar que nem já na época “clássica” do cartesianismo poderia haver qualquer coisa como a ciência da história. A historicidade do romantismo, contudo, se mostra ainda por conceituar, se o que ela interpôs foi o duplo, não o sujeito psico-físico do positivismo.
        Conforme notou Guy Debord, a história-narrativa se consubstancia com Hegel, mas termina depois de Marx. Nesse ínterim o que ela personificava não era outra coisa do que a consciência como causalidade impulsionadora do processo sem fim que afinal se tornou o mundo: “Hegel não tinha de interpretar o mundo, mas a transformação do mundo”, realizando assim, filosoficamente, a filosofia. “Realizando”, ou seja, totalizando, cedendo lugar à história, desde que assim definida como consciência.
          A inversão de Marx e a emergência do proletariado colocam, porém, o seguinte problema para essa história: se não se trata do atributo de um mundo dado, mas da causalidade de uma transformação de mundo, a consciência só pode começar a atuar totalizando a história, dando-a por finalizada, começando uma prática que desmente a posição exterior do pensamento, a conclusão da teoria, ainda que assim só esteja confirmando o método. Ora, como não comprometer assim a “cientificidade”? Como fazer da prática mesma, o lugar da Consciência, da Ciência e da Verdade? No mínimo isso, que nasceu do apogeu do Saber, veiculou uma inviabilização do Saber já pela crítica ideológica.
        Mas a impossibilidade da cientificidade dessa prática é o que parece marcar o momento em que a sociedade se torna Espetáculo, algo a ver, não o produto de uma participação consciente. Tal desenlace parece ter estado no ar desde que o veículo mesmo da causalidade histórica, a consciência, não só se chocou com a barreira incontornável de uma dominação internacional como foi minada de dentro pelo apelo de um inconsciente que não se pode mais ignorar até mesmo no intuito de compreender a transformação que se tornou o mundo desde que ela é inteiramente dependente da ação dos sujeitos. Nesse sentido falava-se cada vez mais desde o pop,  na inviabilização do político – o neocolonialismo tendo evoluído para um quase-totalitarismo informacional-burocrático onde não subsiste qualquer traço de política.
         Toda essa crítica da história narrativizada como relato universal da civilização, que acompanhou o rise estruturalista, se casa bem com a escritura do Ulisses, os universos paralelos que aparecem justapostos no interior de um cotidiano, a sociedade fragmentando-se em grupos e tribos, os grupos fragmentando-se em gêneros, estes em práticas ou em estruturas inconscientes, linguagens que não “comunicam”, só ressoam. Enquanto que, por outro lado, o nível público não expressa a heterogneidade local, mas a perpetuação da máquina capitalista internacional que dispõe lugares e salários, menos um espaço da crítica intelectual, como notou A. Liehm para o contexto pós estalinista à Leste, o que seria aplicável também de certo modo a Oeste, ao meno no âmbito "norte". 
         A inserção do Ulisses nessa problemática da história torna-se exemplar, pois a inviabilização da burguesia como classe sujeito da história – o que ela devia ser, até para Marx, antes que viesse o proletariado para encarregar-se desse lugar – é ao mesmo tempo a inviabilização da história como processo racional-consciente de transformação do mundo, lembrando que foi com a burguesia que se constituiu algo como o mito da Subjetividade.
         Conforme Deleuze, com o Ulisses de Joyce e a arte moderna em geral a obra se torna “a chave do seu próprio código”, não tendo outra totalização possível além dessa. Mas as convenções lingüísticas, que só atuam como o fazem no interior da estrutura da obra, é que fornecem esse sentido novo do todo.
Partes extra partes, que seria impróprio designar “segmentos” e que instauram cada um as condições do seu retorno, de sua eterna repetição, de modo algum as condições de uma continuidade linear, elas convocam o leitor que fatalmente irá desencadear a sua contigüidade, irá saltar entre as páginas, irá reconverter um todo reincorporado pela sua visão.
         Mesmo que não o faça, o texto do Ulisses o encena, pois está repleto de retomadas (trechos que se apelam, que se espelham), de auto-reflexões (“anota isso e recorda”, injunções para “ler”ou “ser lido”), de desmontagens (a mesma citação repetida que varia conforme o sujeito que recorda, desde os versos letra-por-letra na mente de Stephen até simples fonemas, na de Bloom).
          A questão que se propôs algumas vezes de se Stephen é ou não o alter-ego do artista Joyce me parece mal colocada. A operatividade da obra de arte moderna não apela para a restauração da Soberania clássica, o que seria o sentido da consciência de Stephen ironizando o mitema Ulisses.         
       A prática que substitui a história é a da obra, a Arte – mas não a dura arte, a que se pretende numa relação de imitação (imitar/ser imitada) com a “vida”. Na arte moderna, a obra é a heterogeneidade absoluta que só pode ser repetida. O que a consubstancia, porém, sendo essas mesmas repetições, compreende-se a circularidade encenada pela metáfora do Finnegans Wake, que finaliza pelo princípio e começa pelo fim – como Sócrates não recomendava, precisamente, que se fizesse, recorda-nos Derrida.
           Essa fórmula me parece básica para o cenário da arte de vanguarda, e a questão se tornou estipular a transformação  fundamental que acene para a necessidade de se postular algo novo ocorrendo desde então, o que teria que se designar como Pós-Modernidade. Ao que me parece, é o estatuto da crítica da história que mudou nesse ínterim, de modo que um novo conceito de história está subjacente à viragem pós-moderna.
            Ainda na imanência da Vanguarda, a obra opera uma construção de mundo, mas o mundo construído, se o é estruturalmente, tem o poder de integrar domínios na exterioridade da obra, contanto que nessa transposição a "essência artista", o ponto de vista ou estrutura, absorva características destes domínios não presentes na imaterialidade da arte.
            É assim que o fantasma que aprisiona, aquele que opera na interioridade a instalação da mitologia do produto e seu sujeito consumidor, do estereótipo do desejo, desloca a presença de modo que a Subjetividade assim constituída já não tem mais a capacidade de integrar outros pontos de vista se não os da dominação, se não os que são transmitidos para ela reproduzir, do mesmo modo que o obcedado só pode repetir os sintomas da estereotipia do seu desejo devido à interiorização de suas experiências como fantasmas. Esse é o problema da identificação imediata do leitor com o personagem, o  que antes da Vanguarda era objetivo do texto, e nela se tornou problematizado. Como alguns críticos sugerem, como na "estética da recepção", essa identificação é sempre de algum modo problematizado quando se trata de arte em vez de produto de simples divertimento, apenas antes da Vanguarda o meio de problematização era a reflexão que o objeto estético impõe, e nos experimentalismos é a própria forma. Em todo caso, a meu ver na Vanguarda o que se transpõe é o referente "obra" no sentido de que a cena é somente fantasma, neutraliza-se o significado transcendental.
           Mas assim, resta o problema político, se o revolucionário opera a contrafacção da ilusão da consciência. O fantasma que libera, produzido na exterioridade da obra, na imaterialidade da arte, testemunha da autonomia dos mundos, do poder da Subjetivação se fazer presente em tudo o que toca e transmuta. Bloom é o fantasma aprisionante no fechamento dos seus estereótipos, mas é o fantasma que libera quando, na praia, devaneia a paisagem de uma Irlanda possível com a qual todos nós sonharíamos. Stephen não se sujeita à confissão, ele libera a enunciação, ainda que se feche depois na culpabilidade. Não me parece que essa culpabilidade seja extensível ao artista Joyce, a uma consciência do artista investindo contra um mundo de valores tradicionais, bem inversamente, ela é o índice do aprisionamento na interioridade, objeto da crítica estética, o que repõe a espessura entre personagem e autor. 
        Se há falência do político, no sentido tradicional das oposições, ela ocorre por essa culpabilidade, por esse aprisionamento do fantasma de um mundo logicamente diferenciado conforme um critério de verdade originária num mundo sem classes e sem diferenças. Se a arte toma o lugar da história é porque nela se fez o desvendamento dessa ilusão, precisamente por sua potência do falso, pelo seu poder de liberar o imaginário.
           Essa problemática da Vanguarda, desencadeada pelo fantasma como ao mesmo tempo uma potência do falso (imaginário/signo), e uma crítica política da consciência centrada, interpõe a complexidade teórica que antes assinalei como o que cerca a determinação da irredutibilidade, ao menos no plano da intenção estética, entre o realismo e o modernismo. Sem pretender esgotar o problemático para regredir ao hipotético, creio ser preciso acentuar a extensão dessa questão como algo que se relaciona ao estatuto da própria arte e do artista em termos do que transita de um produtor de coisas tradicionalmente destinadas  para um agente  culturalmente investido de um papel social que é ou pretende ser político.
           Assim, é a problemática que deveríamos levantar como historicamente inserida, mas só podemos fazê-lo investigando a cena de emergência do Simbolismo, quando surge o aparato crítico em relação ao Realismo, procurando rastrear enunciados que tenham preservado as implicações dessa emergência desde sua eclosão. Por essa via, descobrimos que o ex-cêntrico que determina um novo problema da história, não imediatamente dada na problemática de vanguarda, na realidade começa a ser tematizado dentro da sua condução, apenas deslocando-se o cenário teórico para as elaborações de margem.

   3 -
      
         São dois os tópicos que assinalam o ponto de vista acerca do simbolismo que aqui está contrastando o que é mais usual encontrarmos acerca do tema. Localizado no contexto de emergência do pragmatismo, o simbolismo não parece “a poesia de todos os tempos”, como considera Carpeaux, pois os símbolos não são motivos alegóricos ou figuras dispostas para suscitar idéias tradicionais numa imaginação receptiva, e sim os elementos de uma produção semiótica que deve criar o contexto de sua recepção transformando o código e a própria linguagem.
         Tampouco ocorre que os simbolistas tenham suposto abarcar “a totalidade da realidade”, como supôs Bosi, conforme uma visão de mundo mística e alternativa do positivismo realista. O que ocorre é que o vazio se coloca como princípio, o voluntário desfazer dos pressupostos de uma realidade comum absoluta, enquanto o caos é o que está se colocando no âmbito daquilo que antes se considerava uma totalidade. O que vai emergir, porém, é essa ilusão de totalidade, o que assinalei como o fantasma.
        Seria inútil argumentar que o caos é um novo tipo de totalidade em nível subjacente,  pois a noção é antitética de “todo” substancial ou concreto em si, como já desenvolvido anteriormente. Os simbolistas esvaziaram o lugar comum de uma obrigação para com o real dado conforme as expectativas do
senso comum. Não se ignora que Bergson e Einstein são elementos antepostos quanto a uma visão do tempo, Bergson tendo construído um tempo filosófico onde a importante noção de virtual depende da aceitação do passado puro, enquanto para Einstein não pode existir um tempo físico sem estar relacionado intrinsecamente ao espaço. Contudo, se essa polêmica é complexa e até hoje ainda repercute, há um modo de lidar com isso que é aquele cujo foco está na recepção das idéias na produção intelectual-artística de uma época.
            A cristalização da imagem desde que se depreenda de uma apreensão do virtual pareceu a Deleuze   algo que, não obstante a recusa de Bergson da imagem cinematográfica como apta à captação do tempo puro, seria totalmente adequado para conceituar esteticamente a viragem de um novo cinema, assim como de uma arte que se designa moderna. Como essa apreensão depende basicamente da noção do devir, algo que se furta à idéia de um tempo homogeneizado, newtoniano, o tempo suposto simultâneo no sentido de independente do observador, vemos como aquelas posições antagônicas podem harmonizar-se com uma mesma tendência estética, a de recusa do realismo objetivo que os artistas modernos apreendem como algo cujo pressuposto é uma mentira ou uma doença.
            Trata-se da imposição de uma realidade fundamentalmente ordenada quando o que o ser humano confronta efetivamente é aquilo que o Manifesto Dada proclamou como dogma, o caos é o anti-fundamento, ou o fundamento irônico, da existência. O que se coloca assim é que não há qualquer fator unificador intrínseco na profusão ilimitada dos fenômenos, mas tampouco há possibilidade de furtarmo-nos ao envolvimento nessa profusão, onde ao mesmo tempo iremos imprimir mais complexidade e instaurar caminhos, leituras e objetos parciais, que não podem, por outro lado, ser avaliados como antigamente se fazia com a produção “poética”, mera fantasia de um cérebro muito ou pouco dotado para isso, mais ou menos relativa a um estado de sensibilidade determinado pelas condições reais vigentes.
           Mas essa literatura “sorriso da sociedade”, conforme citou Bosi de modo bastante oportuno a expressão de Coelho Neto, parece a alguns típica da concepção art nouveau que assinala a transição do naturalismo ao panorama do simbolismo e do pré-modernismo. “Esteticismo, evasionismo, pureza verbal precariamente definida, sertanismo de fachada”, lugares-comuns herdados do positivismo que fundamentam “resíduos da dicção naturalista” misturada com clichês do romance psicológico, tudo isso que Bosi observa nos brasileiros Coelho Neto ou Afrânio Peixoto será reencontrado na produção da geração de “simbolistas classicistas” que sucede a eclosão da revolução armada por Mallarmé, Baudelaire, Laforgue, Rimbaud e outros que não deixaram de figurar como grandes inspiradores dos modernistas de vanguarda. A problemática que vimos perseguindo, aquela das linhas que permanecem como fundamentais na polêmica pós-moderna, e seu desvirtuamento “modernista”, apresenta agora pontos de ataque mais visíveis.
         Carpeaux assinalou três elementos que definiriam o panorama do simbolismo original: o l'art pour l'art, o intimismo e o antiintelectualismo. Esses fatores serão fundamentais no exame de sua evolução, ora para uma exacerbação da revolução esboçada, ora para uma neutralização de características originalmente contidas nele.
          Há dois elementos fundamentais a considerar, o decadentismo ligado ao intimismo e o primitivismo relacionado ao antiintelectualismo. Quanto ao l'art pour l'art, considerado separadamente desdobrou um culto da forma que inspirou os novos classicismos e mesmo, inversamente, simbolismos meio deslumbrantes, meio ocos, em todo caso esplendorosos como o de Danunzio.
           Na América Latina essa derivação e sua recusa estão singularmente expressas na polêmica que cerca a imagem do Cisne, Ruben Dario fazendo dessa figura de animal habitualmente associado a pureza, elegância, impecabilidade formal e fantasia caprichosa, a inspiração de sua poesia, enquanto Gonzáles Martinez preferia eliminar brutalmente, e do mesmo modo que Verlaine à eloqüência, esse ser de “falsa plumagem”- vimos que na França já se havia também recusado as rosas – e um López Velarde, conforme Fernando Alegría ("Antiliteratura") não “deseja falar” nem de “cisnes nem de mochos”, mas de relações efetivas, assim como prefere à fantasia, o humor como algo mais eficaz quando se trata de ser o “desorganizador do manequim de fim de século”.
            A questão aqui é a eloqüência, a linguagem ornada que se recusa, aparentemente, de modo geral, mas que a alguns parece simplesmente estar sendo reintroduzida pela redução da conquista semiótica a um programa formal como expressa o retorno do metro silábico e o credo de uma necessária disciplina do verso não interpretada nietzscheanamente, mas de modo bem tradicional como exercício de uma técnica já historicamente constituída no embasamento de regras. A questão aqui seria menos a de um retorno da superfluidade das artes de salão parnasianas do que aquela que se desenvolve em torno do difícil ponto polêmico, o hermetismo.
          O julgamento desse ítem, por exemplo, interpretando-se a imageria fácil de Dario, essas suas “jóias um pouco falsas” , como meio de se fazer entender por toda a gente, mantendo, porém, o compromisso “modernista” que nesse contexto hispano-americano significa apenas pós-realista, já envolve inevitavelmente um julgamento de valor sobre o simbolismo, como se vê no desenvolvimento da concepção de Carpeaux.
        Para ele, uma interpretação de Rimbaud como a de Claudel – o hermetismo é apenas sintoma da descoberta mística do inefável – se choca com a barreira do fim da poesia, sabendo-se muito bem que Rimbaud desertou da civilização e das letras. Nesse viés, o evasionismo não pode ser um caminho do l'art pour l'art, tampouco pode ser Rimbaud um modelo poético a imitar como queriam os surrealistas, porque esse caminho é o da afasia concreta, não simplesmente “mística”. O l'art pour l'art é o cultivo falso de um objetivo esteticamente duvidoso, só resta dele a conquista da palavra para algo mais do que simplesmente o ornamento ou a revolta, aquilo mesmo que conduziu ao declínio do simbolismo já que os poetas conscientizaram-se cedo da necessidade de “encontrar símbolos de validade geral”, fosse pelo viés de misticismos de adeptos, não mais do gênio isolado, ou da disciplina serena do classicismo.
           Mas por aí seria difícil explicar a intensidade das irrupções muito mais “revoltadas” que interromperam esse pós-simbolismo que se pode ler, também, como um simbolismo instituído. De fato a complicação notável é que ao mesmo tempo que Carpeaux noticia o declínio rápido do simbolismo, constrói sua narrativa do volume 7 em torno do retumbante sucesso internacional do movimento de modo que obras importantes como as de Rilke e Yeats ainda se configuram nessa ambiência.
         Como se sabe, as vanguardas irrompem na plena vigência da produção desses poetas, ainda na década de dez. Assim, muito mais operante do que manter o hermetismo e as vanguardas na limitação de uma “Revolta”, aquela do “homem caído que pretende apreender a língua dos anjos que ninguém entente”, seria notar a relação entre o intuito originalmente simbolista do l'art pour l'art com o intimismo e o antiintelectualismo dos “fantaisistes”.
          Pelo intimismo podemos apreender a relação entre decadentismo e simbolismo ao modo bem mais explícito de Carpeaux, do que daquele pelo qual ambos seriam apenas sinônimos. Ocorre que o decadentismo já está presente no naturalismo como tendência psicológica, mentalidade que desemboca no evasionismo devido ao horror confrontado da realidade focalizada nos seus aspectos mais sórdidos, mais tristes.
          Assim, como se vê em Carpeaux, o decadentismo é algo mais abrangente do que o simbolismo. Ora, como o decadentismo penetra o simbolismo pela via da corrente intimista, pode-se compreender como não contraditório com essas definições a observação pela qual ele foi muito influente no simbolismo internacional, a ponto de em vários países ter se apresentado como a fórmula da definição da prática de uma poesia simbolista. Mas há um ponto em que os simbolistas mesmos “venceram a melancolia decadentista” chegando a uma atitude “afirmativa em face do mundo moderno”. É assim que se chega ao simbolismo instituído da belle epoque e da art nouveau que não dispensa o detalhe “floreal”, artesanal, conforme Bosi.
           Mas trata-se de um período sumamente ambíguo. O movimento socialista está crescendo e se afirmando internacionalmente, porém os operários são rechaçados na Rússia em 1905. O capitalismo está no auge e há um clima de prosperidade geral que Veblen mapeou como “conspicuous consumption”, mas o acirramento da competição leva a descrer da estabilidade dese estado de coisas. A industrialização pode ser investida esteticamente, seja pela introdução de materiais ou de informações como os desenhos japoneses que despertam a curiosidade e influenciam o descentramento impressionista da perspectiva, ou pode suscitar a desconfiança dos que pretendem que a criatividade artística só tem como expressão a via artesanal e pessoal.
          O que se deve reter daqui, a meu ver, é o “novo conceito na função do escritor” , como notou Noé Jítrik ("A literatura como experimentação"), que está em marcha, o que se aprecia melhor se focalizarmos o âmbito sul-americano. Aqui o realismo foi sobretudo um movimento de ação social, um meio de pegar em armas e atuar na transformação da colônia na República quanto ao cenário brasileiro, e do latifúndio escravista em algo mais próximo de uma cultura urbana. Contas feitas do movimento, foram as elites positivistas e militaristas que colheram os louros da vitória.
          Mas o artista não se evade da realidade social, simplesmente, depois, e é aqui que o ponto de vista necessariamente diverge. Apegando-se ao simplismo objetivista do realismo, essa evasão é fato consumado, trata-se dos fenômenos subseqüentes como “revoltas artísticas”, signos do niilismo daqueles que não se engajaram, se não, dado positivo, no investimento do símbolo poético, algo que então poderá ser carreado para a tarefa social. Mas observando o fenômeno por dentro, isto é, acercando-se efetivamente do que pensam os seus realizadores, vemos que uma interpretação bem oposta subsiste, aquela pelo qual o profissional deixa de ser o homem comum que retrata a realidade para ser o revelador da mentira dessa realidade, muito mais  revolucionário tornando-se, já que a imposição de uma ordem fictícia como ordem real, única, social, é o ingrediente que faz do homem a “vítima da razão”.
          É saudável aceitar a complexidade e a ausência de determinação onde efetivamente a unidade não existe, em vez de obrigar à confissão de uma fé hipócrita como caução da normalidade, o que só suscita neurose e paranóia. 
         E aceitá-la, ora vendo esse novo papel do escritor como a do organizador do circuito auto-questionante que resulta da experimentação dos meios, personagens, código lingüístico, função do narrador como no texto de Quiroga, conforme  Jìtrik; ou como a do desorganizador daquilo que, como notou Carpeaux ter sido a descoberta de Gide, se fez “table rase”, verso, poesia, literatura – ao que Fernando Alegria, que assim prefere,  ajunta o teatro, mas essa desorganização, conforme ele, sendo igualmente autocrítica, pois não se coloca o prefixo “anti” a todas essas rubricas sem que ele seja operacional, não apenas ostentação. 
         A experimentação visa questionar os fundamentos do que se devia estar produzindo, para evidenciar a necessidade da ruptura do cânon, como no anti-romance americano-latino da contemporaneidade. Ora vendo o que se produz como magia (Otavio Paz) que agora investe a liberação da Imagem, ou como antimagia (Alegría), no sentido de que contrafaz aquilo que teria criado, traz a sua autonegação, “sua bem armada bomba relógio”, em todo caso creio que o cerne está na fixação do passado, seu desprendimento do presente que se realiza exemplarmente na poesia de Rimbaud, isto é, daquela “concepção do tempo” que nega o encadeamento objetivo, como notou Alegría.
           O sentido revolucionário aqui, conforme ele, está mais no que suscita do que naquilo que explicita, ou seja, mais no que poderá ser recuperado por algum “engenhoso mobile crítico”, no que faz pensar, do que no que mostra para espantar o burguês, a “re-criação” das “formas de expressão”. A revolução atinge, portanto, os fundamentos do idealismo objetivista travestida de cientificismo positivo.
            Mas mesmo antes da anti-literatura surgir com tanta força no cenário das vanguardas, notadamente o latino-americano onde mesmo as “prisões e exílios” da “experiência revolucionária de estudante” como em Roque Dalton (El turno do ofendido), conforme Alegría, não anulou num realismo programático ingênuo a via da Antipoesia, combatendo como tantos “no plano da revolução social com armas conquistadas na revolução antiliterária”, o fantaisiste anti-intelectual simbolista havia traçado esse caminho. É o que se rastreia naquela fixação do passado “na felicidade indestrutível do nada”, conforme Carpeaux, que não é o limite do verbo, da poesia e do entendimento, como ele supôs, mas uma concepção do tempo que não atrela dialeticamente à factualidade histórica a falácia antropológica do “progresso”. O passado, portanto, está instituindo o não-ocidental, o que se furtou à história narrativizada da civilização (colonialismo/capitalismo/ocidente).
            Foi inevitável a uma posição cômoda, centrista ou francamente burguesa, estabelecer seitas que recompusessem o a priori objetivo, por meio de algum formalismo universal, nem que fosse por vias as mais artificiais dos símbolos místicos, tanto quanto a uma posição de esquerda, a implícita aceitação daquela falácia. Até mesmo para um Debord permanece válida a versão dos povos nômades como “preguiçosos” se comparados aos povos sedentários, agricultores. Isto é, a visão de um tempo histórico narrativizado pela antropologia de Morgan, onde o passado só está aí para logicamente ser sucedido pelo presente numa progressão objetivamente recuperada pela razão e como o fundamento da racionalidade mesma.
           O que se supera no pós-realismo é a concepção da obra como devendo ser o veículo da intenção do autor, quando o seu resultado devém de uma experimentação cujos pressupostos não podem ser dados nem por aquilo em que o profissional crê, por assim expressar, nem por aquilo que algum leitor ideal limita no que seria a experiência preconcebida do mundo, mas atende à novidade inantecipável de sua recepção.
             Como em Joyce e Proust vistos por Deleuze, o anti-romance  é assim designado por Alegría uma vez que não compõe uma totalidade, mas é feito de fragmentos que instauram um nível literário-experimental de simultaneidade, começando por ter desfeito a simultaneidade que seria a de um tempo real histórico. Sobre isso Jítrik notou bem como o resultado da desmontagem do tempo linear, como na obra de Juan Rulfo, é “uma malha de linhas que não diluem uma ação cheia de sentido a partir de um ponto de vista histórico, mas que propõem sobretudo uma experiência do tempo tratado como um objeto de consciência, incrustado numa memória, fixo como uma estampa ou como um traumatismo cujas raízes se investiga”.
              O que Carpeaux supôs como o limite verbal da experimentação fantaisiste em Rimbaud, ele viu muito bem como recusa da civilização ocidental, mas interpretou isso como evasão da realidade social per se e busca de refúgio na barbárie. Ora, o primitivismo aqui não é algo óbvio, já que em Alegría ele está francamente anteposto `a completa realização da revolução experimentalista em arte na América Latina, pois guarda as premissas de um indigenismo como linguagem de seita ou mística.
             Creio ser preciso notar que o prolongamento do primitivismo autêntico de um Gauguin ou Rimbaud, no sentido de motivado por uma compreensão clara e de modo algum niilista do que estava recusando, foi muitas vezes motivado por aquela mesma recusa das conseqüências da “purificação mallarmeana da linguagem” que inspirou o simbolismo mágico ou os neoclassicismos da época. Mas Carpeaux, que com essa expressão notou precisamente que o que separa epigonismos e vanguardas nesse momento de transiçaõ ao século XX é ater-se a uma concepção de linguagem poética pré-mallarmeana ou assumir o radicalismo do que esta implica, parece-me que constatou o beco-sem-saída desses experimentadores, à Rimbaud, como um sinal da contradição intrínseca a uma sociedade cujos fundamentos estão comprometidos mas que não pode transformar de repente, de alto a baixo, suas relações produtivas.
             Por um lado a boa revolução da forma, por outro a insustentável mas indeslocável contradição existencial que os artistas performatizam, aquela que decorre do desenvolvimento histórico. Não creio que se possa deixar de notar aqui um certo juízo de valor ético. Pois não seria o engajamento político, a militância, um meio de evitar a decadência ou o que se designou como beco-sem-saída do niilismo individualista? O interessante é que, mesmo que não se queira creditar a Carpeaux um simplismo valorativo assim, se há um consenso entre a moralidade comum e aquela que se quer esclarecida pelo conhecimento dialético, sua consistência está sendo forjada nesse momento, no início do século XX, de modo que o primitivismo se torna uma espécie de pedra de toque.
            Tanto quanto só se possa compreendê-lo como fuga, um movimento para fora da civilização, essa versão poderá ser aproveitada para os mais diversos fins. Mas onde se encontraria uma compreensão dessa movimentação como um caminhar para dentro de outro modelo de civilização, se não ali onde se faz a crítica do centramento da subjetividade ocidental, burguesa ou anti-burguesa, cujo pecado não é ter uma fisionomia própria, mas ter se colocado como o telos e o compromisso moral, a razão de ser, de tudo o que, assim “bem” colocado, lhe precede?
           Vemos, por exemplo, uma mesma junção, em Debord e Clement Rosset, portanto em contextos os mais contrastantes, do problema da esquizofrenia com aquilo que está no cerne de sua preocupação - quando a esquizofrenia é unilateralmente definida como tudo o que difere do parâmetro da consciência burguesa, ou seja, centrada, alcançando ou não o nível de intelecção do conflito social de classes. Em ambos, trata-se de sedimentar uma positividade da definição da loucura, contra as intenções de desacreditar essa categoria como algo válido até mesmo para compreender clinicamente o processo.
            Em Debord é a utilização da teoria de Gabel. A esquizofrenia é a falência da capacidade dialética da totalidade, apanágio esta, portanto, da normalidade do sujeito. Ocorre porque, justamente, não se o subjetiva – ele não se sente reconhecido. Debord considera, conseqüentemente, que o autismo é uma falsa saída para uma consciência que confrontou a essência da sociedade do espetáculo. Ela está, como todos nós, “prisioneira de um universo achatado, limitado pela tela do espetáculo”, mas a solução que encontrou não é para se imitar.
           Seria o caso de se perguntar se jamais o esquizofrênico pretendeu ser reconhecido, e se o seu problema não é justamente a pressão no sentido de caucionar o reconhecimento que se lhe quer, com toda boa vontade, proporcionar, se por outro lado a  crítica do sujeito centrado foi feita por  artistas de um lado, filósofos contemporâneos de outro, no meio os místicos zen,  com resultados tão proveitosos.
           Mas aceitando que a anti-psiquiatria se equivocou pelo mesmo princípio de otimismo, Laing e Cooper argumentando que o problema era apenas que esse reconhecimento estava sendo imposto, não respeitando aquilo que vinha do sujeito, a pessoa, que na sua auto-imagem era o que devia ser reconhecido, isso não é motivo para o julgamento sumário de Rosset: Cooper e Laing negaram a realidade da loucura apenas porque não queriam aceitá-la, tão naturalistas eram eles.
          Mas esse anti-naturalista e artificialista convicto, ao censurar Marcuse por um motivo análogo – este sociólogo negou os benefícios da produção industrial apenas porque estes vinham a contrapelo do seu argumento contra a sociedade industrial – jamais usou o artifício para desconstruir a normalidade do homem de bem que é o emissor da ordem de bombardear uma cidade onde sabe que estão estabelecidos não apenas milhares de homens, mas também de crianças, mulheres, etc., e esse tipo psicossocial funcionalmente instituído, é apenas um entre tantos cuja aproximação parece divergir solenemente de qualquer atribuição do normal.
        Parece que para Rosset só existe um naturalismo que se deve recusar, aquele que não aceita a sociedade assim como se apresenta na sua naturalidade – factualidade – de ser. Quanto a Debord, a conclusão é que as pessoas e as multidões não são capazes de gerir seus próprios destinos. Somente o Conselho, formado pela elite dos dialéticos esclarecidos, tem essa capacidade e nobre missão histórica.
       O que testemunha dos rumos de uma “aventura” – para usar a expressão de Ponty – da dialética que estava formando, na transição ao século XX e num entrelaçamento incontornável com o desenvolvimento da arte, o traçado de um caminho que, não importando o quanto apresente de vias alternativas, não deixará de apontar para essa constante: fundamentalmente a noção de progresso como algo que define o devir numa interdependência histórico-totalizante do econômico e do existencial, da produção e da prática social, de modo que não há como evitar a sobra de um grupo destinado a gerir o futuro da humanidade.
           Eduardo Subirats (Da vanguarda ao pós-moderno) sublinhou uma oposição de intuitos primitivistas, “do expressionismo e Picasso até o surrealismo”, muito correntes na cultura européia de início de século, em relação à consolidação dos “valores mais afins a um funcionalismo tecnocrático e a um racionalismo reducionista do cubismo, da Bauhaus ou do neoplasticismo”. Mas se a recorrência de Picasso e do cubismo nos dois lados da barricada parece algo notável, trata-se mesmo nesse ponto de atacar o problema da ambivalência da Vanguarda. Assim, o seu “ radical caráter ambivalente” não é apenas “artístico”, mas igualmente “ético e social”.
             Ele deriva, porém, de um dado comum a todas as vertentes, ainda que diversamente interpretado, a saber, o anti-historicismo que significa exatamente a recusa de uma sociedade que havia se tornado opressiva porque anti-humana, impessoal e burocrática. O “desejado grau zero da história”, portanto, pode se traduzir por um culto da máquina e dos poderes da razão que deveriam somente ser desviados de sua inércia estatal para afinal serem governados pela consciência do ser humano, ou pela busca utópica, pela vontade de salvação que impulsionou a “busca de formas, cores e símbolos” fora da civilização. Mas isso não é menos assumir a cultura moderna, tanto que, como notou Karl Einstein em Afrikanische Plastik, citado por Subirats, pode não ser muito crível que a Europa tenha chegado a compreender nesse momento mais do que a superfície da arte primitiva.
             Ora, qualquer que seja o parecer quanto a isso, o que não creio dever ser procurado sem vagar já que os empreendimentos historicamente assinaláveis são vários, de inúmeras tonalidades e de motivações não redutíveis a qualquer fórmula de conjunto – nesse aspecto julgá-los como um mesmo “significado biográfico e artístico” pode surgir como um juízo precipitado – o principal aspecto no que tange ao desenvolvimento artístico deveria estar na interlocução com a cultura.
          Assim, um julgamento do realismo-naturalismo e do que ele pressupõe como definição do fazer da arte – para onde olhar e com que objetivo – está implícito nesse expansionismo estético. Os dados que se devem amalgamar a isso, primeiro, sem dúvida “o niilismo, o vazio simbólico e vital, e o mal- estar cultural das metrópoles européias”, mas também como algo importante o expansionismo cultural que está sendo proporcionado pelo avanço de ciências como a antropologia, a geografia e a sociologia, não podem deixar de manter esse horizonte crítico.
     
             
            Não me parece que o núcleo aglutinador da tensão moderna possa ser determinado, como o pode no Renascimento, tendo no centro qualquer decisão sobre a Natureza. Ela não se articula diretamente ao referente, mas seu artigo é metalinguagem, já que a modernidade se coloca pela inserção do transcendental e logo a seguir, pela problematização histórica do transcendetal. Mas que veio a ser do histórico, quando mais se procurou autonomizar o seu relato como uma ciência social - senão, como também afirmou Veyne, ter se tornado sociologicamente esquematizada, e a meu ver, desde aí, narrativizada? Ora, vimos que é isso o que ocorre no Realismo, enquanto pelo que estamos constatando, há um certo consenso em torno do estrutural na pós-realismo, como o que deve deslocar essa narratividade histórica única, mas de fato a ambiguidade desse cenário só começa a se "resolver" quando começa a crítica da história-narrativa começa a se deslocar para a margem, começa a ser uma crítica do ocidente, não apenas uma crítica do que aliena o sujeito.
             Seria oportuno observar um paralelo entre a relação que subsiste do realismo ao naturalismo e aquela que se poderia estabelecer entre simbolismo e primitivismo. Para a colocação inicial, a observação de Paul Zucker acerca do que ocorre no século XIX torna-se fundamental. Mas por aí insere-se de modo mais compreensível o liame que estamos procurando conceituar entre centro e margens.
                Como sabemos, o século começa com uma contraposição estilística em artes plásticas, entre classicismo (David, Ingres) e romantismo (Delacroix, Goya). Essa alternativa proviria do Iluminismo, Zucker vendo-a como duas tendências possivelmente deduzidas de sua motivação basicamente laica, voltada ao mundo terreno, não mais ao religioso sobrenatural. Mas daí duas concepções de natureza podem ser oportunamente observadas. A do classicismo a verá como ordenação do mundo impessoal, puramente racional, enquanto o romantismo a terá como natureza humana, o reino tão vasto quanto diretamente inapreensível do sentimento.
              Ambas as tendências constituem um panorama conseqüente de época, conforme Zucker, devido a que se opõem conjuntamente ao convencionalismo temático e ao profuso ornamento próprios do Barroco e do seu derivado, o Rococó. Mas não que a discursividade tenha sido ainda desprezada. O assunto continua interessando ao quadro, e muito.
            Uma revolução parece ter sido completada, não obstante. A recusa do temático pelo assunto de interesse local sugere, ainda que Zucker o negue, alguma relação das artes plásticas com as mudanças no pensamento filosófico, literário e social. Mas o que ele enfatiza nesse ponto é que não há uma mudança fundamental no conceito de visualidade.
           Se é verdade que o romantismo e o classicismo retrocedem pelas mesmas dificuldades – a reificação no “anedótico, nas falácias literárias e intrusões do não-visual” – ainda que aquele tenha tido expressão “mais orgânica e poderosa” e não obstante a genialidade dos mestres de ambas as extrações, ambos mantém em comum algo que é de vital importância para compreender o que muda tão radicalmente desde o Realismo.
        Trata-se da concepção pela qual a realidade neste mundo, seja de extração físico-biológica, seja social ou histórica, mantém com um ideal uma relação paradigmática, de modo que o que importa para compreendê-la é conhecer esse fundamento, esse caso raro. O Romantismo como uma problematização da história coloca esse problema na controvérsia de Schelling contra Hegel, pois com este ocorre o trânsito do conceito de Histórico, no sentido forte do termo, para o que todo contexto da ação, não apenas a ação decisiva do gênio ou do homem superior. O comum corresponde ao mundano no sentido de factual, o que por ser degradado ou derivado em relação ao modelo, pode ser chamado natural, mas não propriamente o real histórico que o ideal heroicizante procura.
         Em artes plásticas, até os classicistas e românticos do século XIX compartem essa presunção, a de que somente assuntos elevados, exóticos ou inusuais podem servir de temas adequados para o tratamento artístico.
         É notável, quanto a isso, quanto à história da arte nos Estados Unidos não converge com a européia. Conforme Zucker, as artes plásticas norte- americanas, que só começam a amadurecer no século dezoito, não mantém no Norte a prática sulista de simples importação da metrópole. O fato absolutamente original dessa arte de margens, já numa época de tão grande avanço cultural no Ocidente europeu, é ter praticamente começado do zero, mantendo um referencial predominantemente realista, ora incorporando o artesanato nativo, ora atendendo ao gosto dos patronos e público pagante por figuração literal. Quando a influência da Europa penetrou, veio da Holanda, não inicialmente da Inglaterra. Na época que estamos considerando, a transição ao século XX, a influência internacional dessa arte americana é francesa.
           Por esses motivos particulares, nos Estados Unidos já se descobre o que na Europa sobrevém apenas no bojo de uma movimentação profunda que desloca a historicidade tradicional a ponto de se ter conceituado uma Idade que começa agora, pós-metafísica e científica, como em Comte. Com o Realismo, não é apenas o assunto que muda, do raro e paradigmático para esse comum que agora já não depende de um modelo para se considerar como real e tão dotado de importância quanto qualquer objeto de ciência - a ciência se caracteriza por ter como objeto, precisamente, o comum, e é nisso que se singulariza em relação à metafísica, somente esta pressupondo-se como exercício de atribuição ontológica para lá do que simplesmente se mostra existindo.
         Se fosse assim, como assinala Zucker, poderíamos pensar que a intenção de um Courbet, nisso já não de modo idêntico a Millet, foi tratar seus camponeses e operários de modo a convencer o público de que poderiam resultar num tema tão belo quanto membros da nobreza ou altos personagens históricos. Inversamente, o que ele pensava estar despido de “sentimentalidade não muito honesta”, isto é, de todo ornamento, convenção e discurso, era a apreensão crua do modelo.
        As inovações aqui remetem a conquistas técnicas do romantismo e antecipam elementos impressionistas – mesmo o impasto de Goya, grossos traços de tinta sobre a pintura, foi utilizado por Manet que começou sua carreira como realista.
        No Realismo europeu, as inovações podem ser rastreadas como “tentativas de resolver os problemas que surgem devido à mudança no senso de realidade”, conforme Zucker, os contrastes fortes de Courbet (cor intensa e sobras pesadas) sendo  apenas um exemplo das tentativas dos pintores dessa época, com esse intuito. Os elementos de perspectiva incluem agora espaço e distância, nuances de tom e valor se impõe ainda que conservando a sua linearidade. O chamado grupo de Barbizon (Rousseau, Daubigny et alii) contribui com a idéia de paisagem íntima. Não são os sentimentos humanos veiculados pela “paisagem”, mas a apresentação de uma localidade real, a do país, que se apresenta sem sentimentalidade ou idealização, inovação tanto temática quanto estilística
         Em literatura o naturalismo, ainda que variamente conceituado, pode ser visado como a tendência que apresenta geralmente acentuação dos elementos típicos, isto é, mórbidos ou desviantes, da realidade que se tornou, assim como em pintura, o horizonte da preocupação estética. É preciso especificar bem o sentido de artifício nesse contexto. O que se recusa sob essa designação é a idealização do assunto, de modo algum a técnica e a inventividade. Tanto que desse ponto de vista o nexo subseqüentemente estabelecido entre marxismo ortodoxo e realismo se torna óbvio, algo que não se pode creditar ao modo da recusa, nem da produção industrial, nem da história como práxis independente de uma idealidade fundadora.
            O simbolismo não poderia, portanto, ser tomado como um retorno ao romantismo, tendo se estabelecido uma mudança tão profunda a ponto de atingir o cerne da concepção de realidade. Creio que se poderia estabelecer a sua transformação em relação ao realismo no sentido de um retorno ao sentimento, mas não ao sentimento da “natureza” clássico-romântico, um real caucionado idealmente em seu ser e ainda que o ideal fosse o produzido por uma subjetividade historicamente apreendida, e sim dessa realidade simplesmente dada que não está de um lado contraposto a outro, mas abrange a cidade e o campo, a indústria e a cor do céu, qualquer coisa à vista ou à mão e o sentimento muitas vezes inexplicável de sofrimento ou prazer, a pobreza e a riqueza, a miséria e o luxo.
            A “floresta de símbolos” de Baudellaire traduz essa realidade desde que verdadeiramente despida de metafísica, já que a ordenação do real por uma visualidade ordenada e ordenadora como a dos realistas depende de pressupostos eles mesmos não explicitados a não ser pelo ponto de vista de um positivismo no qual não mais se acredita, estando já o envolvimento com a alteridade, com o que se desconhecia antes no seu ser dado à mão, num grau de complexidade maior. Uma realidade que não podemos apreender senão pelo signo e da qual não podemos constituir uma inteligibilidade, científica, conceitual ou estética, senão como linguagem.
            Assim, é uma mesma circunscrição científico-empírica do Real que move o Realismo e o pós-Realismo, ainda que em sentidos tão opostos. Num caso, o caráter radicalmente empírico da realidade é celebrada e estética, no outro é o que se oferece à crítica estética.
            A citação de Baudelaire ironizada por Rosset me parecesse a “carta” desse primitivismo estético:
“O selvagem e o bebê testificam, com a ingênua aspiração ao brilhante, às plumas pintalgadas, aos panos furta-cores, à superlativa majestade das formas artificiais, seu desgosto do real, e assim, sem o saberem, provam a imaterialidade de suas almas.”
             Contanto que por "real "não se tenha nada de demasiado genérico e sim o conteúdo desse conceito no Realismo estético. Com efeito, é essa “natureza” que é tediosa, aquela do quadro e da narrativa realista objetivista que tem ainda o inconveniente do seu imperialismo conceitual, de modo que tudo que não respeita a sua convenção acerca do mundo é infantil ou ingênuo ou louco.
            O bárbaro não é agora visto como no romantismo, raiz da miscigenação cultural que produz o Ocidente, a Europa cristã. Mas vimos que não se pode reduzir a tendência primitivista a um só desígnio, uma vez que se desenvolve em muitos matizes. Como algo que está relacionado ao fenômeno dos nacionalismos que emergem no início do século, certamente ele terá essa feição de retorno ou valorização das origens. Por outro lado, a confusão desse sentimento do mundo, já não mais o sentimento da natureza, que o l'art pour l'art havia interpretado como semiótica, com um classicismo ou culto da forma, culto do signo, reintroduziu o elemento ornamental responsável pela transformação do vazio no aparato dos “hollow men” de Whitman.
            Desistorizar o objeto ou utilizá-lo para efeito decorativo, Parnaso ou Olimpo, trata-se da banalização do que a via mais original do primitivismo estético havia descoberto. Se o real não precisa mais de caução metafísica para se impor na sua existencialidade, por que deveríamos precisar da caução do laboratório ou da fábrica, para considerar real apenas o que podemos filtrar através de suas superfícies, bancadas e janelas? Mesmo isso só se mostra num regime de visualidade que não se instaura de modo a ser redutível a algum fator exclusivo, mas depende de uma complexidade. À descoberta simbolista da semiótica, segue-se a aplicação primitivista da alteridade. Esta invade o interior quando se transforma numa experimentação contínua, da linguagem, da consciência, do imediato.
          A transformação decisiva da sociedade industrial em um universo empírico é o indeslocável limiar de todo modernismo, portanto, esse termo tem uma ressonância que poderia assinalar sua origem no próprio Realismo. É o que algumas correntes críticas objetivaram conceituar, enquanto subsistem por outro lado, rupturas formais, históricas e culturais demasiado óbvias para serem negligenciadas.
           Na crítica americano-latina, essa problemática tem sido desenvolvida imbricada à da especificidade da literatura local.   Assim é nítido o contraste entre a opinião de Antoniio Candido, para quem tudo na produção literária local é tomado e copiado de fora, e uma colocação inversa que se depreende da leitura de vários textos críticos americano-latinos.  Especialmente notável quanto a isso é o de Jorge Enrique Adoun (“o realismo de outra realidade”), assim como a observação de Jitrik sobre a inserção da obra de Quiroga no âmbito do realismo.
             À força de manter-se fiel à realidade objetiva, o escritor latino descobre a impossibilidade de manter o cânon importado para quem essa realidade cabe nos moldes de um ideal típico racionalista e objetivista. Seus personagens, índios, negros, brancos e mulatos deslocados para as margens de um ambiente social permanentemente em ebulição e conflito, não tem a mesma visão de mundo que o clássico operário europeu. Sua concepção é mágica, informada pelo mito, sua visão e percepção do real são filtradas por essa variação de consciência numa realidade cambiante, não é possível que resulte de sua focalização um texto objetivo ou neutro, se bem que isso também não tenha deixado de ser praticado, mas não num plano estritamente limitante do que realmente se produziu.
           O processo literário americano-latino não poderia portanto, ser reconstituído com base nas categorias já formadas na dependência da visibilidade do processo europeu. Mas observando a viragem pós-modernista, torna-se notável como inversamente, é a particularidade do outro-real de margens, que desdefine pressupostos de estilo porque quanto a estes, devem ser conceituados realativamente a parâmetros de ruptura transitando na cultura, o que se torna útil para re-situar a problemática que até aqui não equacionava a pressão da margem no pensamento do centro.
            A especificidade do processo americano-latino se interpretou, por exemplo, por Roberto Retamar, como corolário de uma “intercomunicação” da literatura no continente, isto é, por uma superação do isolamento das literaturas nacionais – até aqui um lançamento literário importante  só atingia o mercado vizinho via seu sucesso na Europa ou nos EUA. Essa intercomunicação ele conceitua como a maturidade de algo como “literatura” do continente, não mais apenas irrupção de produtos esparsos ou mais ou menos sem continuidade com os outros que lhe seriam contemporâneos e intrinsecamente relacionados.  
           Mas  o pensamento de Retamar está veiculando ao mesmo tempo uma concepção da narrativa romanesca americano-latina como não subsumível ao “realismo”  definido pelos padrões europeus . Uma produção que tem sua estruturação autônoma, muito ligada ao resgate atualmente possibilitado das culturas pré-coloniais, até então reduzidas à “oralidade”, isto é, consideradas na exterioridade da hístória e da racionalidade, apenas relacionáveis ao contexto da palavra mítica.
            A meu ver, o cerne desse deslocamento processual pode ser aproximado pelo próprio situamento da margem como algo que não pode estabelecer-se como um centro para o próprio atribuído da sua enunciação.  Uma vez que ela possa ser definida como o faz Mario Benedetti ("Temas e Problemas"). Não se trata daquele situamento marginal que se auto-refere já como captado pelo olhar do centro – the wrong man in the wrong place. Mas sim daquele em que o que se sabe, de modo oposto ao que supõe o centro, é que não se está no centro: “para um escritor francês ou inglês o mundo costuma chamar-se França ou Grã-Bretanha”; mas, “o escritor latino-americano sabe que sua comarca não é o mundo.”
          
  4 -

        Repondo alguns tópicos do que vimos acima. Se o realismo-positivismo havia construído uma história  sócio-darwinista e sócio-evolucionista, narratitivizada, da civilização, isso se deve ao deslocamento da inteligibilidade do histórico à sociologia como se a entendeu pioneiramente, uma ciência objetiva da teleologia, circularmente a definição da lei sócio-evolucionista suposta funcionando através de todo o percurso da humanidade - assim os três estágios de Comte e o modo de produção de Marx, mas também as antropologias classificatórias à Morgan dispondo por um progresso de técnicas o selvagem, o bárbaro e o civilizado.

           Lembrando que antes do início do século XIX, ou seja, antes do Romantismo, não há a história como ciência social, o surgimento da sociologia,  algumas décadas depois, desloca a centralidade que a história interpôs às "ciências do espírito" que haviam surgido com os românticos. esse entorno romântico, a história corresponde a processos de formação de um fenômeno culturalmente circunscritível como uma língua ou nacionalidade.
          Não é o herderismo, certamente, que define para os historiadores o que eles habitualmente conceituam como decisivo na emergência da história como ciência nesse momento, e sim a autonomia da história em relação à "memória". A ciência da história tendo por objeto o documento e por meio procedimentos intrínsecos de acumulação e decifração, Mas o lugar epistêmico do histórico na cultura dessa época é certamente relacionável ao herderismo, mais geralmente à informação do histórico nessa acepção de algo fenomenicamente localizado como apto a fazer compreender o presente hetrerogêneo do que resulta desde o processo de sua constituição no tempo, como encadeamento de ações. Ou seja, o oposto do kantismo, o inverso de toda neutralização do conteúdo e da particularidade do entorno de linguagem e de cultura. A palavra "romantismo" ilustra, conforme W. Schegel, o sentido de fenômeno histórico nesse entorno, traduzindo-se por uma derivação de "romanços", as línguas formadas pela mistura do latim e dos dialetos bárbaros, mistura local que informa cada língua nacional europeia.
           Como recusa do histórico romântico, o realismo-positivismo foi sucedido por um modernismo que alguns julgaram a-histórico, como sem dúvida é o caso onde o modernismo está prolongado numa ambígua crítica que não discerne dele o que era o seu aporte estrutural, como na disjunção deleuziana de devir e história. Mas como um locus ele mesmo histórico, no sentido de situado, vimos que o modernismo corresponde a um tempo da estrutura funcional, ainda que as vanguardas problematizem a totalidade e possam de algum modo ter sido lidas depois como presentações do viés estruturalista.
             Em todo caso, quanto à história, no entorno de época modernista, fortemente marcado pela hermenêutica,  podemos afirmar que a história deixou de ser como era no positivismo-realismo. Nâo mais fática, ou uma ciência objetiva expressando uma lei de desenvolvimento teleológica e universal que se queria obviamente recuperável pela observação do presente. Ela se converte na historicidade no sentido da abertura do sentido, o  Logos (linguagem) do horizonte de unificação do discurso que forneceria o viés humano da inteligibilidade do real, Logos sempre qualificado culturalmente, não universal no sentido da objetividade racional-científica.
          Como se traduziria a palavra "linguagem" em japonês, para uma língua europeia? Praticam os dois interlocutores no diálogo heideggeriano, europeu e japonês, partindo da comum convicção de que seja como for, o primeiro jamais compreenderá totalmente a palavra do segundo, mas chegando a que a tradução aproximada dessa palavra revela justamente a chave da sua intradutibilidade: linguagem é o que resplandece ou vigora "vindo de". O "pré" da pre-sença, a proveniência da linguagem, deslocaria a imediatez do dado objetivo e introduziria do mundo a sua tradutibilidade, ou seja, apenas a perpétua aproximação de uma palavra que  jamais poderia exaurir o ser das coisas. Esse relativismo cultural que vale para o que coexiste no presente, seria maximamente extensível ao passado, tão autônomo como meio de sentido em relação ao entendimento atual quanto as linguagens como visões de mundo o são umas em relação às outras.
          Vemos por que para alguns estudiosos na contemporaneidade, essa recusa do positivismo desde os inícios do século XX, recusa desencadeando em humanities o mesmo afastamento que estava ocorrendo nas ciências da natureza em relação ao mecanicismo, é um neoromantismo. Efetivamente nessa época há intensa tematização do romantismo como matéria de estudos ou como estereótipo fascistizante de "tradicionalistas" (nacionalistas no sentido xenófobo totalitário do termo), mas quando não se trata desse estereótipo, os estudos não revelam senão uma vontade de interlocução que não deixa de permanecer crítica - por exemplo, os escritos de Simmel sobre Schleiermacher, quando Simmel conceitua o seu "erotismo" como um tipo de caráter; ou o célebre e ainda hoje extremamente útil estudo de Benjamin sobre a crítica de arte romântica. Os erros de julgamento do primeiro sobre Schleiermacher, e o caráter circunscrito da aproximação do segundo, não deixam dúvidas sobre que eles mesmos não se entendiam como "românticos".     
              A meu ver, como espero ter ficado claro, se o romantismo é retematizado quando se hostiliza o próprio positivismo que tanto lhe havia hostilizado, do simbolismo ao modernismo trata-se de algo que não estava presente antes, o que chamei "fantasma" como seu efeito, mas cujo conceito é estrutura, causalidade estrutural puramente significante, o modo pelo qual linguagem veio a ser algo que os românticos mesmos não definiam nessa abrangência.
          Eles pensaram os sistemas - como em Schelling e  Schegel se define cada saber e cada linguagem (estilo, obra) estética - e por aí, a meu ver, eles compreenderam a constitutividade do signo, mas não totalizavam o processo do "sentido" nem era essa a tarefa do seu conceito, e sim a formação desde o involuntário (inconsciente) orgânico e erótico, da subjetividade como algo para si (consciente) ao mesmo tempo como realização do si na história/sociedade. Essa duplicidade não está presente na estrutura, e onde ela está presente não há o fantasma, no plano de expressão o correlato sendo o duplo da literatura fantástica.
           Mas a duplicidade do homem, afirmada a sério em filosofia e psicologia nesse entorno de época, é então um dos tópicos que se pensava necessário definir. Não concordo, portanto, com as leituras atuais do duplo dessa literatura fantástica como "fantasma".
           Com o estruturalismo, portanto, toda dúvida que possa ter restado a propósito do modernismo como um neoromantismo, na medida em que "modernismo" possa também ser tratado como um entorno de época que comunica culturalmente da estética ao que está transitando conceitualmente, se desfaz pela sua circunscrição ao "estrutural", bem ou mal compreendido este.
             Mas desde que se fala em pós-modernismo, está havendo uma atitude muito irredutível em relação à história, contrastada à espessura funcional-estrutural ou hermenêutica. O que se designa o estilo historicista  pós-moderno, é o que relança a problemática de pastiche e paródia. Trata-se da repetição nua do passado ou da alteridade cultural, que assim deixa de ser pensável como passado ou como outro não porque se presentificam pelo uso estereotipado,  mas inversamente, porque se desfaz ou ironiza praticamente a oposição.
           O historicismo é o que ocorre na arquitetura, por exemplo, quando na fachada de um edifício ultra-moderno se apõem reproduções de colunas gregas, ou quando se repete um detalhe de Michelângelo num projeto de habitação atual. Mas na literatura, algo parecido é praticado como reescritura - Vargas Lhosa em relação a Euclides da Cunha, o mito homérico revisto pelo olhar feminino, etc. Ou  o retorno dos aparentes realismo e narratividade na prosa após os modernismos solventes de sintaxe e diegese. Em todos esses casos os críticos se interrogam se podemos pensar que algo do repetido está sendo conservado (paródia) ou, pelo contrário, se a nudez da repetição implica uma total neutralização do sentido, um deslocamento absoluto dele (pastiche).
         Enquanto "experimentalismos formais" e linguísticos, aquelas dissoluções modernistas tendem a ser deslocadas pela literatura que emerge desde a era pop mas que se torna preponderante desde os oitenta, na qual, como assinalei, se trata do "texto de experiência" - agora o termo experiência significando o  "vivido" que sendo aparentemente reconstituído abole o experimentalismo formal por uma prosa figurativa do referente, do mesmo modo que a figuração retorna em artes plásticas.
               O dilema do historicismo, entre pastiche e paródia, pode ser reinterpretado como alternativa do ato da repetição como trazendo algo para o mundo presente existente, ou inversamente, ironizando ou contrafazendo a imediatez da presença. Essas opções relançam as visões alternativas da estrutura. Ou o repetido é um elemento do sistema antes praticado, mas elemento descontextualizado num sistema alheio; ou é o que interfere com a leitura do presente como  um sistema neutro "objetivo", pare ressituar o presente em termos de movimento de sentido, movimento hermenêutico da totalização (não a própria totalização) que envolve o dado na cultura.
            Nesse segundo sentido, o presente é sempre uma leitura do passado, ainda que irredutível a ele; enquanto no outro, tratam-se de mundos possíveis que não se comunicam de fato, apenas ressoam sob regimes oponíveis.
            Pode ser, contudo, que o pós-modernismo seja uma proposta em ruptura para com a economia da estrutura em ambas as versões. Esse encaminhamento não é comum, porém, no que se consolidou como a ambiência teórica de questionamento do pós-modernismo. A meu ver, ele é promissor. Pois, a oposição entre passado e presente elide, em todo caso, a formação, proecessualidade histórica que repõe aquele locus da ação que todo situamento do fantasma elide radicalmente, tratando como o derivado em relação ao fundamental - função (consciência) ou sistema (inconsciente). A oposição está portanto construída e supondo-se na exterioridade daquilo mesmo que ela constituiu. O passado poderia não ser totalmente uma coisa ou outra, se como o significante ele não for o esplendoroso isolamento do signo. Algo do passado é inteligível, algo não, algo transita a atualidade, algo inexiste para nós, etc. O passado "puro" deixou de ser uma realidade conceitualmente afirmável. O antigo presente foi presente. A história descontínua não elide a reposição das processualidades imanentes, de outro modo não poderíamos entender as próprias rupturas. Não há "uma" História além dos seus métodos de estudo e tratamento dos dados, mas no sentido do que esse método disponibiliza, o que há são histórias informadas pelos processos imanentes que configuram "presentes"  no tempo espacializado. Essas configurações são fenômenos qualificados, como por exemplo uma realização estética.
          Assim, na pesquisa do cérebro atualmente o cerne dos questionamentos não mais se delimita pelo "central", e sim pela duplicidade de local e global. Respectivamente, nível de interação com estímulos, e nível de coordenação em uma experiência de sentido. Esses niveis dependem de abordagens, métodos e questões próprias um em relação ao outro, do ponto de vista da pesquisa. Já a pesquisa do inconsciente em ruptura com o Édipo, coloca desde a Gramatologia apenas a problemática da alteridade do signo.
       A repetição nua seria na verdade uma duplicação - assim como entre os níveis oponíveis, o que ocorre é duplicação, o signo é duplo, não é um mesmo o visto e o visível. O visto é formado em processos que não coincidem com aqueles em que se forma o visível. Assim para todas as oposições levantadas como pertinentes ao pós-modernismo: público-privado, pastiche-paródia, retorno do realismo-aprofundamento do modernismo. Portanto, o que se repõe como relinearização aparente do texto não poderia ser suposto uma reapropriação da história pela teleologia.
             Há uma provocação do passado, certamente, na medida em que se nós não o vemos como ele mesmo se via, não é apenas porque os meios de sentido são irredutíveis, mas porque há uma crítica do sentido possibilitada se as mudanças não são feixes de transformação ao mesmo tempo descrevendo a irredutibilidade de dois sistemas e, como transformação, sendo descrita em termos sistêmicos como os parâmetros mesmos da sistematicidade metódica - ou seja, como renúncia metódica do histórico, do socializante, do caráter inteligível das ações no tempo, etc. Se a causalidade é uma categoria cada vez mais desacreditada, o erro tem sido definir causalidade física como inteligivelmente deriva´vel da "causalidade" dos atos humanos. Essa derivação pode  servir para desqualificarmos o primeiro sentido de causa, o físico. Mas ela não basta para exaurir o que ocorre em nível de atos humanos recirculando para si o projetado como causalida de física. Creio ter sido o pós-kantismo o cenário importante dessa mesma crítica.
           A relação histórica e o caráter politico (interfernte na nossa efetividade socializada) dos atos humanos não são do mesmo modo que um nexo de causalidade pontual que se determina entre fatores igualmente distributiveis entre o antes e o depois. Os fatores mudam qualitativamente conforme são provocados no decorrer da nossa atuação, o âmbito dessa qualidade sendo, contudo, nós "mesmos" enquanto engajados na decorrência.
           Entre Kerouac e Doctorow, creio que essa concepção qualitativa do tempo ativo humano já está em comum, no entanto, a geração beat ainda desistoriciza ativamente a experiência própria porque sua recusa de ambos, a teleologia positivista e as possibilidades alternativas da economia do fantasma, é mediatizada por algo que, paradoxalmente, devia solver o fundamento lógico das oposições, mas preserva-se como opositivamente situado, uma exterioridade da cultura, o orientalismo zen ou tal (Japão ou China), ou seja, a oposição não chega a ser transformada num relacional dos termos (oriente/ocidente) que fornece o rastro do que a situa enquanto oponível.
                   Assim aquilo de que decorre a desconstrução do sentido transcendental nos sutras, dentro da literatura oriental, é um envolvimento ativo com o mundo apto a dotar a experiência pessoal dos atos com um valor inultrapassável por qualquer valor atribuído de uma fonte além desse envolvimento, enquanto nas traduções em gíria beatnik do que se expressa nos sutras, tudo vai bem até que se apresenta o momento da interpretação do ethos, em Big Sur: "Todos nós concordamos que e demais pra gente, que estamos cercados pela vida, que nunca vamos conseguir entender a vida, e aí o jeito é a gente rodar a garrafa de uísque e quando ela está vazia eu salto do carro e vou correndo comprar outra, e ponto final".
                Já em Ragtime de Doctorow, cada linha de envolvimento privado como o percurso focalizado-presente de cada personagem, bifurca sobre outra linha quando o foco muda, retornando sempre cada um dos percursos e compondo desse modo caleidoscópico o tecido das estórias pessoais, mas creio que podemos situar uma questão política que reune todos os percursos: que é mais político - Emma Goldman (socialismo universalista), Booker T. Washington (movimento "racial" organizado) ou Coalhouse, esse ofendido da raça que vai fazer justiça com as próprias  mãos?
               Ora, a questão não é  política no mesmo sentido do que deve ser qualificado como o político no envolvimento da questão mesma. Há uma sutil transposição porque enquanto questão ela é histórica, deve marcar o nosso diagnóstico sobre o que ocorreu no passado e que está de algum modo conectado ao presente enquanto acontecimento da história estadunidense, ocidental-capitalista, etc. Ela só pode ser posta, deslocada do antigo presente sobre que ela julga, no entanto, justamente, o deslocado é aquele presente político.
                

           5 -

             
                       A  unificação do discurso hermenêutico-sistêmico seria o que a pós-modernidade desconstrói, como podemos ver em Doctorow justamente na ironia do discurso de Coalhouse e Emma Goldman. É interessante notar  que Hutcheon, em Ragtime vê apenas o locus romanesco pelo qual ocorre o descentramento da visão elitista da sociedade americana onde não há negros nem imigrantes, rduzido como um outro centramento possível em relação àquele onde havia (há) negros e imigrantes. Inversamente a essa perspectiva do ex-cêntrico em termos de recentramento, creio que Ragtime de Doctorow,  que geralmente se considera pós-modernista, pode ilustrar a desconstrução como sendo literariamente a da transcendência da ficcionalidade, não sem manifestar o caráter ficcional do discurso que se pretendia unitário-unificado, e que era o da consciência hermenêutica tal como a podia entender o tempo de Coalhouse e Goldman, do socialismo universalista e da alternativa única entre um movimento organizado mas "branqueado" ou um investimento isolado, puramente privado e passionalmente conduzido coimo revolta.
                  Mas se para demonstrá-lo é preciso refazer sua construção no sentido de expressar como ele é construído de modo que funciona como a verdade da consciência do sujeito de sua enunciação, é preciso notar que o próprio texto pode não estar, e aliás, não pode estar, unificado ao discurso que ele desconstroi. Isso se expressa, por exemplo, pelo deslocado olhar do personagem-narrador que aparentemente recorda ou vê o que ocorre, mas essa voz narrativa é ambígua - o personagem não pode ter de fato visto tudo o que ele relata.
                Além disso, o que precisa ser enfatizado é que aquilo que nós sabemos hoje sobre aquele momento histórico não é o que os personagens sabiam dele. Por exemplo, as alternativas políticas espelhadas pelos personagens permitem apenas identificar Brooker T. Washington como a importante liderança no movimento anti-racista de inícios de século, e toda a crítica que poderíamos mover às limitações do tempo em relação ao que esse movimento é agora, seria que a sua "escola social" foi o mais das vezes a indústria, como a do Alabama para Washington, e desse modo a integração do "negro" tenderia a ser uma integração cultural à ideologia ocidental. Mas de fato, Washington não expressava politicamente um pensamento próprio. Assim, conforme relata Everett Hughes, pelo menos a partir de um certo ponto pode-se documentar que os discursos que ele pronunciava em público eram escritos por Robert Park, que depois organiza a escola sociológica de Chicago.
           O envolvimento de Park com o movimento racial que nessa época integrava uma das principais vertentes do ativismo  num país em franca ebulição política, foi desencadeado por seu encontro com Brooker Washinton que o aconselhou a investigar a opressão dos negros nos Eua, num momento em que a verve de Park como crítico severo das operações pára-legais do neocolonialismo na África, mais precisamente no Congo "belga", já havia rendido o possível para o objetivo de escandalizar a opinião pública contra os "tubarões" do capitalismo . Esse encontro parece ter sido importante em sua carreira. Por anos, desde aí, ele esteve unido a Washington, após o que Park se mantem atento à organização da escola de Chicago, ramo da sociologia empírica que assinala historicamente a pioneira formação sociológica nos Eua.
           A importância da escola de Chicago na história da sociologia, não seria possível tematizar aqui, mas seria preciso registrar que nunca é demais salientável, tendo suscitado uma metodologia ecológica em sociologia urbana que permanece em uso,  e assim podendo exemplificar novos aportes à controvérsia dos funcionalistas contra a pesquisa empírica na sociedade. Na verdade, o capitalismo atualmente pode ser revertido na sua concepção sistêmica, intrínseca à história europeia e indiferente à operação de margens, se utilizarmos muito dos resultados da pesquisa empírica acumulada ao longo do século, e que desfazem os pressupostos weberianos de "legalidade racional" quanto ao seu funcionamento.
           Por outro lado, a atuação de Washington em Ragtime mostra o hiato intransponível da mentalidade política do líder negro de inícios de século, época em que a concepção intrínseca-sistêmica estava se fazendo na Aleanha,  à própria existência factual do homem negro (Coalhouse). Nesse ponto é que converge a constituição construída do discurso como um horizonte comum da mentalidade de Washington e Goldman, como um a priori histórico que no entanto demarca apenas a intransponibilidade entre o que a história oficial pode contar - a  mentalidade de suas lideranças - e o que efetivamente ocorre.
           Hutcheon semelha captar algo desse deslocamento do texto em relação ao que o constroi - ou ao que ele desconstroi - ao tentar conceituar o que seria a “corporalidade ficctícia” que as obras pós-modernas, exemplificadas nesse passo com Doctorow, tendem a apresentar, “em vez de abstrações, mas ao mesmo tempo tendem a fragmentar, ou ao menos instabilizar, a tradicional identidade unificada ou subjetividade de caráter”. Assim, ela concorda com Jameson que Ragtimeinstala uma crise na historicidade”, mas não supõe, como ele, que isso seja em si algo negativo.
           Ora, o que me parece surpreendente na leitura de Ragtime, é justamente a inteireza de caráter que ele consegue efetuar na recepção dos personagens, compondo-a, é certo, da fragmentação do acesso ao visto como esse todo hiper-coerente pelo procedimento de alternância do foco, que assinalei acima. 
        Mas também por uma apreensão do visto que lembra a assim chamada prosa imagética ou cinematográfica de Oswald de Andrade, onde o visto é decomposto em elementos não hatitualmente sintagmatizados. Vemos Ford pelos interstícios de gestos que decompõem a ação de estar postado no meio de um campo, entrevista ela mesma em meio a uma profusão de relatos aparentemente ligados como a ideia da produção em série e a trajetória de Ford, mas construídos textualmente por associações imprevistas, como o que inspirou Ford: a “visita a uma instalação de acondicionamento de carne, onde o gado atravessava o recinto pendente de ganchos presos a cabos”. Aliás, é interessante registrar que MacLuhan atribui a inventiva de Henry Ford, inversametne, à extensão à fabricação do principio de reprodução da imagem tipográfica
            Em Ragtime, a ação de estar postado com os gestos que se delineiam aqui e ali entre esses relatos –mastigar um talo de erva ou roçar a grama com a ponta do sapato – ela mesma é fragmento do que seria o seu comportamento efetivo, a complexa arregimentação da invenção do motor, da composição do automóvel, e da fabricação serializada, complexo de que só apreendemos o efeito do que Ford vê enquanto está postado, a saber, unidades sucedendo-se, do mesmo modelo de automóvel.
           Mas esse pequeno capítulo efetua uma apreensão inteira de Ford, ainda que bastante oposta à interpretação comum de um desumano explorador de homens. Porque os relatos misturam a inspiração técnica de Ford, e os seus desdobramentos calculadores do aproveitamento estratégico, com um sentimento, misto de auto-concepção sócio-existencial, de piedade pelo “homem” - ele não tem mais que apreender o sentido de um grande número de tarefas, não precisa exibir uma inteligência de que na verdade pode estar desprovido, mas tem que fazer apenas o que minimamente ele pode, uma tarefa por homem, e aquele “que coloca o parafuso não coloca a porca”, aquele “que coloca a porca não a aperta”, e assim “a capacidade mental do operário não seria forçada”, enquanto que algo do gênio do inventor “consistia em parecer a seus executivos e competidores menos inteligente que eles”.
           Quanto a Emma Goldman, personagem  histórica, tem importante papel na economia de Ragtime como uma espécie de extremidade que resume a série de personagens comuns, de classe média ou brancos afluentes, a qual se contrapõe à série de personagens incomuns como a classe alta ou brancos capitalistas cuja extremidade é Morgan, o alto milionário financista. Assim, numa composição decrescente desde Morgan, Emma assinala o lugar da ruptura da continuidade social, pois não são nem mesmos os anarquistas ou proletários organizados que ela encabeça que poderiam se colocar após esse limite que ela estabelece estruturalmente, mas os marginalizados, que Hutcheon nota não ser sujeitos da legitimidade social, no sentido pelo qual a lei não tem neles vigência, não porque eles não a observam, mas porque de nada lhes adianta, não podendo dela servirem-se, como Coalhouse, o artista negro que não obstante ser de uma correção exemplar, não pode apelar para a justiça quando se trata da violência cometida contra sua noiva ou contra sua propriedade.
            Ora, Emma é também uma espécie de extremidade do próprio texto enquanto uma reunião de personagens construídos de certo modo, pois é ela que assume o discurso explícito da totalidade e da coerência que todos os personagens exibem infalivelmente enquanto caráteres, não obstante, como vimos, o recurso de sua apreensão ser o acesso fragmentário. Assim, isso se torna exemplar no momento em que discursa, em meio a outros sobre o mesmo tema, a propósito da revolução no México.
            Ela sobrepuja os outros oradores no ponto preciso em que, de uma descrição de Zapata com seus trajes típicos, por um lado, personalísticos (privado), por outro, o que já o aproxima enquanto figura humana ao invés da habitual reserva à análise universal e histórica da situação, ela salta para o oposto desse viés singular, pois, quanto a esses traços humildes e típicos, “meus camaradas, não se trata de costumes estrangeiros”, nem são os territórios mexicanos terras estrangeiras, pois “não existe camponês mexicano, não existe o ditador Diaz. Existe apenas uma luta no mundo inteiro, somente a chama da liberdade tentando iluminar as medonhas trevas da vida neste mundo”.
          Contudo, assim como a honestidade ímpar de Coalhouse é o elemento mesmo que o precipitará na cena de sua conversão num bandido protagonizando uma cena terrorista, sendo que o estopim da revolta é o aparentemente fútil motivo da privação do seu automóvel, mas isso após o desfecho trágico do noivado, a coerência de mundo do discurso de Emma Goldman se vê interrogada pela própria ficcionalidade, quando à reminiscência traumática da violência sofrida por Reitman se confronta a indagação de Sacha: ora, mas que importância tem o sofrimento pessoal ou, mais ainda, a sua revogação, se o responsável pela libertação de Reitman deve ter sido “algum liberal de consciência culpada”?
            Na verdade, essa coerência, no ponto alto do discurso citado de Emma, parece em relevo sobre a escritura  do texto, assim como a inteireza dos personagens sobressai como efeito paradoxal da fragmentação narrativa na profusão dos relatos, ou seja, francamente há um contraste entre a fragmentação real e a consciência centrada dos personagens construída pela convergência que eles pugnam por encetar, aos seus discursos.
            Assim, quando Coalhouse, intimado pelo líder negro Booker T. Washington a render-se a fim de não comprometer a causa anti-racista, responde assombrosamente para os padrões retóricos desse líder, ele mistura no que para ele, no entanto, é uma unidade evidente, vários discursos de legitimação: a identidade étnica, a identidade social profissional, a racionalidade, a justificação moral humana e a masculinidade: “É exato que sou músico e homem maduro, mas esperava que isto lhe indicasse o solene raciocínio da minha mente. E que talvez pudéssemos ser assim, ambos, servos da nossa cor, insistindo na nossa masculinidade e no respeito a ela devido”.
            E Emma responde  a Sacha: “meu caro, se começarmos por ensinar-lhes seus próprios ideais, é possível que depois consigamos que aprendam os nossos”; mas não é aqui que deveríamos localizar a famosa “ironia” do texto pós-moderno, naquele sentido em que se pode localizar a “marivaudage” na peça rococó? Pois a despeito daquilo que está obviamente informando a inteligibilidade do enunciado, como o que permite interpretar o sentido auto-sustentado da enunciação, trata-se de uma continuidade apenas pre-concebida como auto-evidente. Que continuidade pode haver entre os ideais do liberal e aqueles do anarquista?
            Ora, de forma alguma poderíamos supor que o texto está reforçando o raciocínio de Sacha, e isso de modo bem preciso. A discursividade envolvida na provocação deste a Reitman contrasta fortemente com a pura apresentação sensível da devastação psicológica de Reitman devido à repressão.


         A interseção aparentemente desconexa desses dois motivos, de Emma e Coalhouse, me parece justificada porque em ambos os casos trata-se de um contraste entre o fragmentado e o centrado, o que seria o real e a ilusão propriamente ideológica no sentido inverso ao de Luckas, pois aqui o ilusório é a projeção da totalidade em termos do próprio discurso que o personagem não vê no seu caráter construído, mas somente na coerência intrínseca da construção, mas isso de modo que um outro contraste, mais profundo, é que se torna o cerne da problematização da história. Ou seja, não importando o quão ilusórios são o discurso e a auto-apreensão centrada da consciência, os personagens se sacrificam por algo que ultrapassa o seu discurso, como a "história" (Goldman, Washington)  ultrapassa o histórico da singularidade (o camponês, o negro), sacrificando-a ou ignorando-a.
            Eles se sacrificam aparentemente por esse discurso construído-identitário que o outro discurso social ultrapassa, mas ambos os discursos são idealmente o mesmo. Pois o construído-identitário não é mais que um fragmento do discurso social que foi essa totalidade que o texto desconstruiu,  que existia como tal enquanto o horizonte ideológico e histórico do tempo. Ou seja, atuando estrategicamente a sua autonomia, eles são sacrificados na sua singularidade, na construção que, de si, se fazem.
            Resta que o ex-cêntrico não parece restar como o construído-identitário, na medida em que ele seria fragmento da unidade contraditória desse todo do social. Mas sim enquanto ele não é aí inserível de modo algum, porque ele não é interpretável, nem para si mesmo, a interpretação qualquer, inserida ou reproduzida, restando uma função do horizonte ideológico da totalidade e o que resta é essa realidade, tão fragmentada e indefinida quanto o Real, sacrificada. todo o efeito do texto é somente o deslocamento ex-cêntrico da centralidade, a sua impossível construção totalizante.
           Assim, transpondo essa mesma problemática para a produção do cinema brasileiro chamado “de artista”, à época de Glauber, vemos que o didaticismo ou a pedagogia dessa produção - como cartilha revolucionária  - restou um tema polêmico: ela é prescrita por Glauber, mas rejeitada por outros, como Barrio e Ligia Pape. Aqui, no entanto, é preciso notar que a pedagogia de Glauber equivalia a um deslocamento da temática universalista da Revolução por um situamento estrito do "terceiro mundo". Ora, sendo que a decomposição, que chamarei princípio de explicação, estamos aceitando como o que se mantém em comum nesses procedimentos cujos resultados e motivos são extremamente variados e até contrastantes, como a convergência em Glauber na Idade da Terra e a divergência em Pape no Carnival in Rio, temos que o pedagógico resta polêmico, já que o que se estaria “ensinando” ao desfazer os pressupostos construídos e ilusórios da representação, seria que nada há a ensinar, no sentido de que nada há a compreender nessas produções, como o que seria totalidade do próprio Real.
           Mas o real não é algo diferente do que nele é fragmentário: assim, qualquer discurso pelo qual se deixe de considerar essa realidade que de forma alguma poderíamos supor inapreensível – considerar como faz Sacha ao interpelar Reitman- me parece ser nada mais que "discurso" nisso pelo que a questão se resume a para que isso serve, em vez de restringir-se fundamentalmente à assunção pela qual isso sente.
           Ragtime irá assim, paradoxalmente, ser extremamente otimista: enquanto o operariado ideologicamente integrado como classe estava literalmente destinado ao sacrifício, cozinhar batata-doce num recipiente de carvão, ou tocar realejo, ou publicar livros de arte que pudessem ser comercializados como um objeto num bazar, ou seja, orientar a vida, como o artista, “segundo o fluxo da energia do continente americano, será metonímico da produção do objeto estético que é o texto que estamos lendo, comercializado do mesmo modo, mas livre do determinismo do discurso sem que por outro lado, essa liberdade seja menos política.
           A questão desse otimismo parece ter a ver com a celebração da conquista de uma visibilidade, aquela pela qual um movimento anti-racista interessado somente em integrar moralmente as massas à ideologia branca, para o qual o negro Coalhouse nada importa quanto ao que lhe importa, ou o pressuposto de um mundo único pelo qual lutar, como ideal frente ao qual pessoa alguma ou sofrimento algum tem importância, não passam de ideologias da totalidade, enquanto sua justificação enquanto discurso consiste apenas na suposição de estar provendo os interesses "do" negro ou do operário.
           Podemos, também aqui, contrastar o Ford de Doctorow ao empresário clássico, mas não é nele, e sim no cruel Morgan, que em Ragtime iríamos localizar o "tubarão" capitalista. Ora, do mesmo modo que os humaníssimos Emma e Coalhouse, essa ave de rapina chamada Morgan sustenta um discurso construído como o desse mais puro dever-ser: levar avante, multiplicando, o que recebeu como patrimônio da família, a sua empresa ou a soma sempre crescente dos seus negócios.
          A questão da positividade ou otimismo que se desprende dessas páginas de Doctorow, no entanto coalhadas de eventos trágicos, se relaciona a tantas acusações de cinismo,  irresponsabilidade ou narcisismo feitas a esse tipo de narrativa “pós-moderna”. Pois, de fato, o texto imperceptivelmente escava  um nível revelado como o da ação historicamente transitiva, onde não funcionam as oposições fundadoras, mas não porque as diferenças tenham sido ideologicamente mascaradas ("apagadas"), e sim porque a inteligibilidade nesse nível onde a produção não está sobredeterminada pelo capital, resta operante como aquele do Real não ficcticiamente sobredetermionado pelo/como discurso.
             Mas mesmo o individualismo já é por demais totalizante para esse algo que não pode ser suposto por nenhum elemento ex-cêntrico, sendo isso o Real no sentido dessa ex-centricidade absolutamente intotalizável justamente porque absolutamente indecomponível – já que não lhe resta qualquer funcionalidade.     
                Assim, se "historicamente" a pós-modernidade como o entorno periodizante de após a guerra fria, é o cenário de uma sociedade "neoliberal" paranoicamente competitiva, neonal fascistizada, o erro tem sido sobredeterminá-la como o que realmente acontece, ou seja, o que decorre nesse nível de investimento político - ou ativo - nesse sentido pós-modernista de Ragtime. Esse nível do ex-cêntrico, tem sido, ao invés,  sistematicamente obliterado com efeitos de tamanha distorção do que ocorre como na dedução de  Silviano Santiago, de que tal sociedade neoliberal "alternativa e cínica" é "decorrente de maio de 68". Enquanto Tel Quel nos informa que as "lutas feministas" (luttes de femmes) ou "o Movimento pela libertação das mulheres" (Mouvement pour la  libération des femmes)  na sua forma contemporânea foram "desencadeadas pelo maio de 68" (Declenché par Mai 68).
               Já um dos traços marcantes do pós-modernismo, contrastável a tendências percorrentes do modernismo,  é a recusa de totalizações identitárias não obstante isso implicar justamente o ex-cêntrico, o deslocamento de problemáticas típicas do sujeito centrado ocidental por aquelas que se constituem na experiência do marginalizado ou do alterizado em relação ao "ocidente" (capitalismo; metafísica; lógica identitária). Ou seja, recusa-se "primitivismo",  s  expressão do imaginário de povos não-ocidentais deixa de procurar veicular-se como que para um interlocutor que o rotula ao modo de uma identidade descritível.           
          Afirma-se agora mais como linguagem atuante, naturalmente veiculada. É o que se nota em Kangoroo Dreaming de Tjapaltjarri (1986). O mundo do sonho é o mundo sagrado dos aborígenes sul-africanos onde residem os espíritos ancestrais que criaram o mundo da vigília. Aparentemente abstrato, as cores, linhas e formas geométricas na verdade mapeiam o território de uma tribo, detalhando sua história e registrando sua importância. Há um simbolismo que é fundamental à obra: as formas curvadas vermelhas denotam cangurus deitados na margem de um rio, por exemplo, e cada detalhe do quadro tem um alcance simbólico.
         O pós-modernismo abrange linhas de investimento estético específicas de tendências de envolvimento do artista, enquanto efetivamente uma entidade singular culturalmente inserida, mas sem que assim se possa depreender uma tipicidade da sua inserção. É o caso dos trabalhos de mulheres em artes plásticas que recirculam as questões de gênero, sendo recorrentes os que tematizam a construção do estereótipo de gênero atrávés da cirulação mercadológica de objetos (cosmético, roupa,  moda, etc.), que criam literalmente o corpo feminino.  Barcelona Fan, de Miriam Shapiro (1979), posiciona na tela um leque produzido em tecido ricamente padronizado. Essa obra foi precedida pela de Rebecca Horn, The feathered prison fan, escultura que mostra um leque gigante no interior do qual se vêem somente as pernas do que seria uma mulher totalmente aprisionada pela estrutura do objeto glamourozo e sedutor (1978).
                 Há coexistência de técnicas e estilos, citações de outros meios sem precisar contextualizá-los, uma ruptura profunda com qualquer expetativa de gêneros literários ou mesmo de formas de linguagem. 
A noção de temporalidade pode ser também desestruturada porque, para um personagem, o passado que ele idealiza ou o futuro que ele projeta, pode ser mais real do que o presente que lhe é tedioso, ou opressivo, ou simplesmente absurdo.  Isso abrange a desestruturação da narrativa como dos seus elementos fixos: o enredo, a estória, a apresentação dos fatos consequentemente concatenados. O personagem pode não poder decidir sobre o significado de algo no passado porque não se completou, no presente, tudo o que se relacionaria com ele. Mudanças de nome podem assinalar a sua impossibilidade de totalizar-se para si mesmo numa unidade projetada identitária.
                 A afirmação do Novo não se desvencilha do que lhe precede, assim como a afirmação do singular, do “sujeito”, não se faz sem se surpreender numa relação constitutiva com o que já existe na linguagem, na cultura, nos outros com quem convive, na sociedade e na história. Não se pode, por outro lado, recuperar o passado na sua diferença. Somente interpretá-lo relativamente, naquilo que dele vem ao conhecimento, à luz do presente.
                Assim, a própria ficção não mais se constrói como independente da História, nem esta se mantém, como ciência, capaz de fornecer uma perspectiva neutra sobre os fatos. História, ficção e ideologia se misturam, não se consideram inteiramente separáveis, ainda que possam manter focos de realização independentes.
              Sobretudo, o tópico da cultura de margens poderia ser enfeixado pelas duas noções fundamentais no panorama atual: o Outro (o singular não-ocidental, na medida que o ocidental porta a Identidade como sujeito da história tradicional e da cultura oficial) e o Signo (o meio opaco de sentido que problematiza a expressão ou a compreensão da alteridade por já se estabelecer conforme um ponto de vista da identidade).
            Henry Louis Gates mostrou assim que na mais recente produção literária da negritude há uma veiculação deliberada do autor de ficção àquele (s) que lhe precede (m), como Ishmael Reed que tematiza  criticamente seus precursores (Hurston, Wright, etc.). Com isso ele “desconstrói” o pressuposto de que há uma identidade suposta ideal como “o” sujeito negro. O que há para uma autêntica literatura da negritude focalizar são os sujeitos “negros” existentes, singulares e constituídos dentro de um campo cultural e histórico preciso. Questionar a tipificação estereotipada das margens, o paternalismo e a utilização demagógica, é também um dos traços característicos da narrativa latino-americana atual. É o que poderíamos estender para o ex-cêntrico, que se tematiza na sua singularidade historicamente envolvida, não como identidade típica que, pelo contrário, tem sido obsessivamente esterotipado nos meios de comunicação de massa, com vistas a fascistizar o ambiente social - ao menos é o que tem ocorrido no Brasil neoliberal.
           O descentramento do texto em relação ao referencial cultural já abrange uma auto-reflexão da ficção sobre si mesma, não somente sobre a visão de mundo do personagem. Ela reflete também sobre o próprio modo de ser da linguagem e do meio literário que o personagem problematiza enquanto meios culturais oriundos do referencial ocidental que precisam, portanto, ser canibalizados ou seja, misturados e problematizados aos focos da cultura em que exercemos nossa atividade estética ou teórica.
            A ficção não se mantém independente da sua própria construção. Como não supõe haver perspetiva única, não pode se apresentar como uma forma já predeterminada. Ao mesmo tempo que desfaz os pressupostos sobre o que “deveria ser”, precisa tematizar o que é que veio a ser. Solvendo o gênero, transforma-se numa meta-ficção (ficção que tematiza o  fato de ser ficção).
     
                                                                                                                     28 / 11 / 2011
           
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